terça-feira, 20 de janeiro de 2009

O não-diálogo que Guirigó escutou

Aonde Guirigó nasceu e viveu nunca chegou o sinal dos novos tempos. Inexistia algum manicômio, e a prisão era somente uma cela mal e porcamente conservada. A polícia não tinha muito trabalho. Lojas e estabelecimentos não passavam de vendas ou pequenas boutiques - no máximo. Nem mesmo os botecos eram muitos, mas - e isso é notável - estes dois ou três botecos que ali existiam recolhiam a corja de malfeitores e terminava por realizar o imprestável serviço institucional e disciplinar para o povoado. Geralmente os trabalhos para as autoridades locais se limitavam aos bares. A tarja preta da cidade era a cachaça. E os analistas, o confessionário e as rodas de novenas.
De tal forma que aquilo era pouco para Guirigó. Não atoa que ele era o buraco negro que engolia aquilo tudo. A indisciplina do moleque comia todos. Nem cachaça nem reza dava conta. E ainda que houvesse os sinais dos novos tempos, para Guirigó não há novos tempos .
Sua prisão era a prisão de todos. Se ele era o único que isso compreendia? Tanto faz.
Certo é que belo dia, Guirigó passava próximo da venda de Miguelito, um uruguaio misterioso que guardava dentro de casa muitas velhas quinquilharias. Não era daquele mundo aquela estranheza de guardar coisas, imensos baús e estantes. Sua venda era como uma qualquer, mas recebia periodicamente alguns compradores de fora, um deles era constante, um homem branco e alto que nunca conversava com ninguém. Chegava na venda e Miguelito logo fechava expediente para levar o comprador para dentro de casa. Essa atividade não soava ilegal para ninguém; de alguma forma todos sabiam que se trocavam eram as tais quinquilharias; o que ninguém compreendia era porque alguém de longe ia parar lá para comprar objetos mais antigos que os mais antigos moradores da região, e tudo sempre de uma forma que soava esquisito para o povoado, um excesso de formalismos e rigores, cuidados com as peças, um uso de um óculos estranho e o manuseio com flanelas, certamente muito estranho. Guirigó não dava a mínima para isso.
E com essa indiferença ia passando próximo à venda de Miguelito e logo ia deparar com o boteco do Mário. Era como ir de uma esquina à outra na mesma rua, mas passando por uma praça -a única praça - com suas árvores e pássaros ardentes de um festival bucólico, antes de chegar à outra esquina, Guirigó se distraiu com um passarinho pousado no calçamento: Sabiá ou João de Barro? De relance não reconheceu. Sentou-se e logo viu. Sabiá! E o pássaro bateu asas de súbito, como se a exclamação por pensamento do garoto assustasse o pássaro. Nisso, Gurigó viu dois fulanos que conversavam em pé de frente ao Mário´s. E nesse instante a JukeBox do bar entoa um sertanejo elétrico, ou seja lá o que aquilo fosse. A cena chamava a atenção do garoto, que recolhia uma certa calma naquela hora. É que já tinha cagado.
Depois de alguns minutos, a jukebox pára de tocar e Guirigó consegue ouvir o que os dois capiais tanto trocava em palavras. Eram Vevé e Armando. O primeiro nada mais era que um pintor de paredes instalado a cerca de 3 anos na cidade. Como era um tipo de trabalho muito ordinário e específico, tinha de fazer outros serviços, geralmente de limpeza, para a população. Assim se tornou faxineiro da venda de Miguelito. Era Vevé quem contava para todos sobre as coisas miúdas e estranhas que se vendiam com os estranhos contatos do uruguiao. Falou-se certa vez em ouro, mas ninguém acreditou, pois afinal de contas, Vevé era outro estranho que não se conhecia muito acerca de seu passado na cidade, e muito provavelmente variava das idéias. O segundo, Armando, de vida um pouco mais fácil, era homem de algumas posses e certo prestígio. Nascido e criado na cidade, era o oposto espelhado de Guirigó. De porte bem apurado, de juventude ainda resistente em sua face, já conseguira se anoviar com a galante filha do grande fazendeiro da região, Coronel Leandro Genivaldo. O nome da moça não importa.
E como se o franzino Guirigó não houvesse se dado conta, ouvia a conversa apurada dos dois. É que se a princípio não incomodasse o fato de estarem de pé, bêbados, eram duas figuras que se contradiziam entre si. Um pobre e coitado mesmo, e o outro, bem mais avançado do que rico. E era essa a graça toda. Tudo bem que não estavam bêbados a um ponto culminante, de enrolar a língua. A última coisa que havia na conversa era língua enrolada, pode ser que falassem uma língua diferente, por códigos, mas isso nem passava pela cabeça de Guirigó. Ele sabia o que tava acontecendo mesmo. Enquanto um, o humilde, dizia coisas do tipo:
-É que a vida é...a vida é a morte ao contrário né, né. É assim, a pasta de dente que a gente passa nos dente depois do de-comer, ela não tem nada da vida não, nada a ver com vida. É que se fosse entrar no viver a gente tinha era que entender de comê. Que comendo a gente vira o que é, a gente é o que come né, os tomate, os tomatiiin vermelio pra deixar as pernas e os braços do jeito que o tomate é né. E por dentro a carne, tem que comer carne que é pra dar estrutura. E recheado com isso é o feijão, que é a sustança. Feijão e arroz! Há de comer muito arroz.

O outro, respondia na mesma entonação, mas em outro tempo-espaço, que só Guirigó era testemunha:
-Há de se ganhar dinheiro. Ninguém vive só porque come não. Se fosse pela picuinha de uma caça nós éramos tudo era caçador, até hoje. Tem é que trabalhar. Arremeter as terra do de-comê pra nós, sabê plantá e sabê criá, mas sabê vendê também! Olhe. Sabe que sou da opinião, e minha opinião é singela, é das humildes, porque sou homem trabalhador, filho fiel do deus criador. Creio em deus pai, amado e de seu filho redentor. Ô, e quando eu era minino, eu ia era sê padre. É!!! Sê padre, queria usar batina, e falar bonito pro povo, reza em latim pra deus me ouvi. Mas aí, sem falar latim nem nada, eu aprendi, eu, me ouça, eu aprendi a escutar a voz de deus, e ele me disse, que eu devia era colher os frutos, casa com moça da terra, e prosperar os ganho. Isso é! Ele me disse, e eu ouvi, guardo até hoje em mim a voz divina.

E Vevé tentava escutar, mas não entendia nada:
-
Ah, mas se o deus é o divino, há de se não precisar de nada. A bênção tá dada. Se cê precisa é de um que-fazer que deus mandou, não é preciso mais nada. A vida num é dada assim não, não pra filho do diabo que nem nós. Cê tem o que comer, cê é abençoado, mas cê num tem, e tem fome, cê é filho do mal. A vida é do diabo, num é de deus.
Tô errado? Quando o sol vai dá sua careta pra nós de manhã, isso deve ser alguma tramóia, ou de deus ou do diabo, ou dos dois! Mas que há, há. Onde já se viu ter a fome e não ter o de comer? E o sol, esse mesmo sol que arracha nossas cuca! Há, mas quem diga que nada cresce sem o sol e tem os que lá do mar se guiam pela lua pra voltar pra casa e pra pescar o pão nosso, mas onde já se viu, a lua que brilha o noturno, e o sol que não sussega nossa vista? Só pode ser tramóia! Só tramóia. Eu acho que tamo aqui porque somo castigado, filho do demo, a fome é o castigo meudeus!

E falava espalhando os gestos, uns gestos que ninguém conseguia entender. Aliás, Guirigó se ria, do gesto e da fala. Vevé era homem de preguiça, trabalhava o que devia, e tinha sua humildade sempre na frente. Mas o impecilho maior, ou era o seu julgamento dele e dos outros, ou o julgamento dos outros nele. Ele dizia isso porque sabia das dificuldades do Sertão, da vida no campo, e por isso fugia, vinha pra cidade, fazer o mínimo trabalho que fosse, qualquer coisa era melhor que trabalhar arando terra. Seu discurso era o mesmo que sempre ouvira.
E começava Armando novamente:

- Eu fui criado pro que sou. Ah e se tudo for como tiver que ser, no fim ainda me torno governador. É que a vida de fazendeiro, do bom fazendeiro, não tem espaço na fazenda não. Lugar de arrendador é na capital. É com o mundo dos negócios. Eu sou homem de negócios, trabalhador, esperto. Você me aperdoe mas acho que não sirvo pra essa cidade não.

Vevé ia fazendo hum-hum com a cabeça até o momento em que Guirigó quase se destrai com outro pássaro. Dessa vez era pardal ou tico-tico? O moleque não olhou pra ver, tava mais interessado no diálogo inusitado dos dois capiais. E eis que surge no entre-momento da distração um vendedor. Se põe em cena entre Vevé e Armando.
Pisou na calçada, se apresentou com o nome de Neto, com uma rápida citação ao seu avô, dono de seu nome, Senhor Boécio Guimarães, Pernambucano, filho de um branco com uma índia e que teve a sorte de ganhar o nome de branco porque a índia além de aprender o português deixou o seu pai apaixonado. Neto levava a vida pela vida de eterno retirante, o que vem a ser o mesmo que vendedor. Não tinha outros compromissos a não ser para consigo. Conhecia grande parte do Brasil; do Amazonas ao Mato Grosso do Sul, do Maranhão ao Rio de Janeiro. Não conhecia mais porque dizia que tinha preguiça, e que já tinha conhecido o que lhe interessava e que gostava era do nordeste mesmo. Estava vendendo sandálias e tinha uma eloquência no modo de falar, que deixou até o próprio Guirigó com vontade de comprar uma:

-E na vida o que mais que você faz? Que mais que você faz além de andar? Olha que mesmo que ainda tenha do melhor cavalo e da melhor carroça, que tenha do melhor carro a motor, e possa andar de avião e tudo o mais, os pés ainda serão usados. E que trate bem seus pés então, que se tu é cabra, cabra homi, então teu pé é mais ainda! Nada nesse mundo tem a valentia dos pés! Olhe pro chão, pras pedra, esses pedregulho! Olhe pra esse sol, que calor, essa poeira levantando, e quem tá te sustentando esse tempo todo? ELE!!! Há de cuidar bem de teu pé. Vamo lá. É sandália da boa, minha gente, é sandália de côuro curtido. - E terminava as frases meio que cantando e empostando a voz.

No final acabou arrematando três sandálias, não, quatro! O Vevé bem que ficou com vergonha de só levar uma, mas era o que podia levar. Armando que levou as outras três. Teve até desconto, porque era compra a vista. Dizia que vida de fazendeiro merecia descanso para os pés, porque as terras eram muitas pra se caminhar. E disse que uma ia guardar pra quando fosse governador, e que ainda que fossem muito humildes, ele as usaria como homenagem ao povo que o elegeria. Terminada as compras, os três se juntaram para beber mais algumas cachaças e conversarem sobre o que cada um sabia falar, e que Guirigó sabia muito bem. O que não deixava o moleque sossegar das idéias era o porque daqueles dois terem começado a conversar do nada, e ainda por cima num bar, já que dos mais inusitados dos encontros, esse era o maior, Vevé e Armando. Mas acabou se convencendo de que não tem porque mesmo e que nada mais propício do que beber e conversar. Permanecia inexplicado para o garotinho curioso era o conteúdo da conversa, já que apesar de tanta troca de palavras, a última coisa que tinha sido feita, foi conversarem.