terça-feira, 21 de julho de 2009

Zé Dendágua

Guirigó nunca teve problema com a sua guiriguisse. Para alguns ele era Guirigó até demais, mas ele mesmo era só Guirigó. Seu tamanho nunca foi medida para as consequências dos seus atos, de tal forma que para alguns ele tava mais era para bandido-marginal merecedor de voz de cadeia do que meninisse na curva da ingenuidade. Assim sendo, era ele de cá e os outros de lá, a gente bem sabe disso. E numa dessas fez-se de o metro-e-vinte bandear distância qualquer. E foi mesmo. Parou foi na Baía de todos os santos (com a chegada de Guirigó, mais um diabo), nos mares grandes e desconhecidos pela gente de lá d´onde nasceu. E, se vindo do toco de gente que era, sempre foi o mistério de onde saía tanta, mas tanta molequeza, igualmente foi como ele parou lá em tanta distância. Talvez caiba aqui notar que os tantos e as distâncias entre o Guirigó e o mundo fossem tais, que seria indiferente o cá e o acolá. E assim, Guirigó encontrou o mar, e o mar encontrou Guirigó. A praia? Dos que dizem e ouviram conta-se que o filho-do se encontrou com as criaturas marítimas, c´as tartugas nadadoras, gigantes e chocadeiras! Quem contou primeiro foi o Joalin, levantador de paredes, que aceita trabalho até nas grandes distâncias. Conta que ele nas tartugas se agarrou e deixou que o levassem até onde elas fazem o ninho, igual os passarim.

- Das primeiras coisas que sempre se soube do muleque era seu gosto e cuidado com passarim. Nem o estilingue ele deixava que atirassem mais. Quando deparou com as criaturas ele disto deve ter se alembrado e pensado mais que elas eram os pássaros do mar. Ô mas que o muleque tinha que ter razão, e foi pra água sem saber nadar nem nada, só pra ver as tartuga nadar debaixo d´água.

E o que se conta, da parte que chega, era que o muleque até que tinha razão mesmo, que das tartuga só faltava o canto do pio. E aí, o que o Guirigó fez, ô Joalin?

- Ah, é aí que a história melhora: parece que diferente dos passarim também, as tartuga num ficam pra chocar os ovinhos, não. E o Guirigó, aquele pretinho, queria desenterrar os ovos pra esquentar igual fazem as chocadeira. Mas não custou pra ele entender que era diferente, mas largou os ovinho com muito custo, achando que não iam chocar. Quê de dois mes depois nasceram os fiotin, e o Guirigó ficou num contentamento sem igual. Ah, mas que ele queria até era ensinar os pequenos a cantar canto de pio de pássaro. E não se controlou quando viu que um monte dos bichin morre quando vão correndo pra praia nadar. Tentou, mas tentou salvar tudo, com lágrima escorrendo, foi uma tristeza só. Naquele dia ele deve ter entendido que é assim mesmo. Só que morre de ódio até hoje do tal do caiangueje, um bicho esquisito que mora debaixo da areia e tem pata de gancho, e mais dois ói arrebitado que olha pra tu, sempre em pose de combate. E também aprendeu a desgostar de um pássaro gritador, de bico amarelo, que parece um gavião vestido de branco.

E se o tempo fosse mesmo amigo do Guirigó, parece que ele ficava era por lá mesmo, deixando que o sal do mar dissesse quem ele era. Mas as coisas não tem determinação precisa mesmo, e se o mistério da partida do pequeno parecia não ter solução, foi essa tal notícia - já famosiando e virando lenda, quase uma tradição oral contada em hexâmetros datílicos -, foi essa tal notícia quem revelou alguma coisa para o desentendido da partida. Parece que algumas pessoas quiseram se ajuntar ao pretin lá na Baía, e conseguiram o feito, à base de carona, paradas em cidades distantes para uma esmola, outrora um ônibus de uma região a outra, caminhadas longas em beira de estrada, até a tal da praia com tartuga nadadora. Dos que foram, a princípio uns cinco ou seis muleques que desaprenderam as malícias e brincadeiras e sentiam saudades do mestre, e mais um bêbado velho que não tinha mais o que fazer, chegaram dois. O velho morreu no meio do caminho - atropelado - e dos muleques, um deles era um tal de zé, e já se esqueceu se zé era o nome dele mesmo ou se era pela incorporação do apelido típico e usual, zé dendágua. O outro era colega do Guirigó mesmo, e de algum modo não iria incomodar, mas o zé dendágua...foi só se chegar na terra e encontrar o pretin atarefado com sua nova vida de encantador de tartuga, que tudo mudou. Agora já não importava mais elas, os passarim do mar, as tartuga, nem os filhotinhos brotando da areia, miniaturas, que ninguém nem explicou que eles tem que ir pra água nadar que eles já sabem de tudo; foi só o zé chegar que nada mais importava, era preciso ir-se embora. E expressão miúda do muleque ficou grosseira, de emburramento sem cura, era preciso uma solução; uma fuga era o mais imediato, mas aí o dendágua ia atrás, chegava até de volta: "se chegou inté´qui..." dizia pra si mesmo o pequeno, que logo percebeu o gosto do zé mais o outro amigo com as tartuga. E começou a ensinar a eles tudo o que sabia sobre elas, sobre os inimigos naturais delas: que tinha de tudo pra matar fiote de tartuga. E ensinou tudo do mar, e das areias, dos bichin que existiam lá, e nas pedras e dentro do mar, e passou o dia contando causo e mostrando e levando aqui acolá, adentraram a noite na conversa, e quando a deusa dos róseos dedos iluminou a primeira aurora, os dois amigos, o zé dendágua mais o outro, eram grandes entendedores e de tudo sabiam da nova vida nos mares salgados. E dali mais uma semana com eles, Guirigó sabia que eles não iam embora nunca mais, que aqueles dois eram agora pescadores, sertanejos pescadores, de fiar rede e passar semana em barco pescando. Agora Guirigó podia voltar pra casa, a distância do dendágua. E foi.

No mistério do ir repousa também o mistério do vir, de um dia pro outro aquela cidade apareceu com o jovem velho conhecido pretinho cagador, amante das raparigas e bom de bola, que levava jeito pra herói de histórias e servia de inspiração para um ou outro letrado poder ter o que fazer. E no que pisa a terra de volta, Guirigó já rodeia a redondeza, dos brejos à praça da cidade ouvindo e cantando junto com a passarada que o esperava ansiosamente, cheia de saudades.