terça-feira, 16 de dezembro de 2008
Chuva Abençoada
Mas Guirigó, feito quem visse um anjo, teve a visão da salvação. Aquela mangueira carregada pra ele encarnava a figura de um pratão, bem forrado com rango que ele mais gostava. A tal mangueira, ia alto no quintal de seu Justino, e já da esquina da ruela apontava majestosa. E agora, em época de mangas aos montes, ela dava era das boas; coração-de-boi, sabe? Guirigó, rápido, rápido, se livrou do desânimo e da nostalgia que a fome já fazia pesar sobre sua cabeça baixa, e incorporou seu meneio matreiro e espevitado. Logo, logo se propôs a pular o muro de seu Justino, subir mangueira acima, e tratar de sua fome por meio daquela suculência de manga. O muro foi mole, o pretinho era astuto e esguio, além de encapetado. Só antes deu uma olhadela, não queria vira-latas a atrapalhar seu objetivo. Como não deu por nenhum, num pinote já estava agarrado no tronco da rainha carregada. Trepou, foi subindo, mas sentiu alguém chegando... Olhou pra trás, e deu de cara com um vira-latas franzino, que se aproximou e ficou observando sua escalada com cara de quem tinha vontade de latir, mas estava com preguiça. Afinal de contas, já chegara a hora da sesta, e até ele, depois de filar sua tigela de restos, se sentia no direito de um cochilo. Deitou por ali mesmo, e nem se ligou mais pra Guirigó; que a essa altura já ia alto e traçara um objetivo, já que desafio pouco pra ele era bobagem. Queria mesmo era catar a manga maior, seria seu troféu. Parecia até que já tinha se esquecido da fome, parecia que o novo desafio enchia seu peito e sobrepujava o ronco alto da barriga.
Seu Justino, que saía pra varanda afim de tirar sua soneca, deu por conta do farfalhar das folhas, e pensou: “É passarinho! E pelo jeito é o dos grandes. Deve ser o Tié que a tempos quero engaiolar. Vou é armar minha arapuca.” E foi, de arapuca na mão pra debaixo da árvore, quando, pra seu espanto, deu de cara foi com aqueles caniços de carvão. Era o moleque encapetado, no qual há muito a cidadezinha mantinha os olhos atentos.
- Ô seu moleque, desce já daí que vai arrumar idéia de cair!
Guirigó levou foi um susto, e deu uma escorregadela bem dada.
- Mas eu tô com fome, seu Justino.
Despistou Guirigó, que já tinha era se esquecido da fome e só pensava mesmo no seu desafio de pegar a manga rainha, a grandona lá do alto.
- Essa manga tá é dando cheia de bichos, seu moleque!
- Bom é assim, que já vem com a carne dos bichinhos. Não se ligue, seu Justino.
Falou isso enquanto descascava uma das menores e mandava ver, pra dar uma enganada no estômago e seguir em frente na escalada.
- Mas... desça já daí, sua peste!
No que retrucou Guirigó, já com os beiços todos lambuzados do amarelo da manga:
-Não desço mas é mesmo. Tá boa por demais!
Nesse meio tempo, tinha era juntado umas mexeriqueiras e uns gaiatos que, acordados da sesta pela gritaria que ribombava pelo silêncio da ruela, vinham conferir qual era o motivo da agitação no quintal de seu Justino. Quando olharam para cima acompanhando a vista do dono da casa, logo reconheceram o guri que já ia bem alto, e o burburinho geral foi um “ah, só podia ser”, quase em uníssono.
Enquanto isso, Guirigó passava por perrengue inesperado lá em cima. Verdade mesmo é que aquela manga quente e bichada havia batido feito bomba na barriga do guri. Já ia lhe dando uma reviravolta nas entranhas e um suadouro frio pela testa. O incomodava também aquele bando lá embaixo, a perscrutá-lo, e com certeza cochichando más palavras sobre ele. Todo mundo maldizia os maus modos do moleque, e ninguém tratava de tentar ensiná-los. A intenção geral era: “tem que mandar esse moleque pra outros lados, só vive aqui pra arrumar confusão.” Apesar do moleque ser querido, o mais fácil era se livrar do problema, mandá-lo pra longe dos olhos e viver em paz na calmaria. Mas não, Guirigó ia lá em cima, e agora dera pra comer manga podre e trepar em galho mais alto de árvore gigantesca.
- E agora, onde já se viu? Deu pra encher a pança de manga podre. Vai que pega uma lombriga, um verme brabo! Além de viver pentelhando nossas vidas, vai cair doente por aí...
Guirigó já não ouvia nada, passava era por aperto lá em cima. E ia se incomodando cada vez mais com todo mundo a fitá-lo, feito mico em extinção trepado na floresta. Além do mais, a vontade de cagar ia aumentando e o guri já não agüentava segurar. Deu uma olhadela lá para baixo, e como já ia insatisfeito com a audiência, baixou o trapinho que chamava de bermuda e mandou ver, satisfeito. Choveu foi merda sobre o grupinho lá embaixo; as fuxiqueiras, os curiosos, seu Justino e o coitado do vira-latas, que tirava seu cochilo alheio a todo burburinho. Derramou-se caganeira!, chuva sob forma de manga mal digerida, caíam do céu gotinhas informes e asquerosas. Foi a comida que ninguém quis dar a ele... o moleque se virou, ora bolas. Respingou e trovejou bosta a tarde inteira no quintal de seu Justino... até quando as estrelas já iam tomando conta, a merda continuava caindo sadia, lavando a alma da tietagem e adubando a terra da cidadezinha malfadada.
Verdade mesmo era que Guirigó encarnava o que ninguém queria ser. Moleque sem nome, família, nem educação. Moleque sem rosto, e sem físico. Mas Guirigó nem se ligava, nem era com ele. Se tinha parte com o mal, ou se era o mal em si, não se sabe. Verdade mesmo era que Guirigó cagava pra todo mundo. Subiu foi mais ainda, prum tal de infinito que agora apontava bonito no anoitecer vermelho de brisa quente. Foi em busca do seu objetivo, da sua capetagem; em busca da manga grandona, da rainha que seria o seu maior tesouro. Subiu foi em busca de munição, só assim ele podia cagar pra todo mundo, só assim ele era ele. O tal que ninguém conhecia.
domingo, 7 de dezembro de 2008
Apresentação de Guirigó
Era uma vez um menino pretinho chamado Guirigó. Não se satisfazia com pouca arte, com Guirigó tudo era demais. Um demônio diziam uns, um amaldiçoado diziam outros, tanto que por fim todos concordaram que não importando se Guirigó tinha parte com o mal ou se era ele o próprio mal, botaram um padre pra benzer a testa do garoto. Aquilo deve ter dado certo por volta de uns...20 segundos. No final da benzedeira o padre saiu foi se benzendo, com medo daquela capetagem toda passar por toque de pele. O que aconteceu foi que, como menino que era, Gurigó achou graça de ver homem de saia e levantou a batina do padre enquanto rezava alguma ave Maria. Problema pequeno perto do que Guirigó levantou mesmo: era que o padre era bem da moda antiga, não usava nada por baixo. E é claro que no quarto só estavam as beatas que iam para onde homem de batina fosse.
Nesse dia, Guirigó, que andava meio odiado por quase todo mundo, até que voltou a ser bem tratado. Era que a mais última que ele aprontou tava fazendo a vizinhança rir horrores, e Guirigó bem que tinha alguma prática pra contar um conto. E dizia:
- Na hora que todo mundo rezava “bendito sois vos entre as mulheres” as beatas acabaram quase conseguindo o que mais queriam!
- E por que não viram, menino?
-Por que o padre tem a hóstia bem escondida!
E o toque da risada geral era proclamado por quem estivesse em volta do pretinho. Era bem querido o moleque, mas com ele não tinha um que não mantinha os dois olhos atentos. Certamente porque todos já tinham sido vítimas da criatividade sem fim de menino pobre e órfão. Guirigó nem tinha família. Era meio criado daqui, dali. Foi por um bom tempo ajudado pelas beatas, depois não foi mais. Do pessoal que sustentava ele, existia era mais pena do que carinho mesmo. Até porque, era assim que se exigia uma relação com ele. Quem ali teria carinho por alguém que não passava da cozinha de sua casa; Que era de rua? O mais econômico era ter pena mesmo, carinho se dá pra quem tem mais.