quinta-feira, 13 de maio de 2010
Não é por nada, não
Guirigó nessa de ler. E lia lia lia. Ajuntava conhecimentos. Pretinho impetuoso, e agora, além de tudo, simpático aos olhos dos outros. Bem visto. Isso já se disse: o moleque só vivia trancado na biblioteca do seu Roberto, cismado de ler. Não queria saber de amizade, interação conversa. Estava era focado. Queria engolir tudo duma vez, nem mastigava. Problema foi que seu Roberto tinha um filho de quatro olhos, pele pálida e expressão cinza. Quase que ninguém conhecia o guri, de tanto que ele vivia enfurnado em casa. Até que certo dia, enquanto os dois dividiam a fechada sala dos livros, cada um de cara enfiada no seu, se fez um barulho fininho que foi um estrondo. Ritual quebrado! Lápis cotoco do pretinho que caía no chão, rolava rolava e parava no pé da mesa do quatro-olhos. Esse que olhou, pensou se, pegou e andou até o pretinho, já conhecido e admirado por ele das histórias de traquinagem que ouvia o pai contar. Era por pura timidez que nunca tinha abordado Guirigó, agora freqüentador assíduo de todo dia toda hora na sua casa. “- É teu?” “- É.” Gesto e silêncio. “Bem te conheço...” “É? Pois nunca que te vi”. “Raimundin, meu nome” Guirigó achou muita graça dos gestos curtos e enferrujados, e daquele assessório de velho apoiado no nariz do moleque. Apesar, sentiu simpatia. Deu brecha. Dali pros dias adiante foram ganhando intimidade. Conversavam mais era das coisas de livro, Raimundin sabia muito. Aqueles papos de teoria, de contas, de histórias muito velhas. Guirigó admirado, chegou a perguntar se aquele negócio de duas lentes apoiado no nariz tinha algum poder mágico, de fazer saber das coisas. Raimundin quatro-olhos muito se riu, desengonçado, como se não acostumado a isso, e disse que não. Amizade essa estranhada por seu Roberto, os dois tão diferentes. Trocavam idéias. Idéia dessas sem muito fundo, de papo furado. Até que Raimundin perguntou por quê de Guirigó ter largado aquela vida tão solta pela rua, de fazer o que quiser, numa liberdade de calar ou gritar. Guirigó isso não soube responder. E isso ficou rebatendo na sua cabeça. Feito pensamento não formado, idéia em feto. Noutro dia retrucou: “Não é por nada não, mas e tu, por que é que não sai de casa? Nunca te vi na rua...” E isso ficou rebatendo na cabeça de Raimundin, que também não soube resposta. Vida que não dá pra explicar. Será que os dois pensaram? Só eram assim por simples ser. E os livros? Eles explicavam, baseados até no dia de nascimento, na posição das estrelas. Forjavam até personalidade, baseados nuns papos de psicologia, e em algumas muitas outras coisas. Tudo tinha explicação, e dava pra saber o porquê de ser assim assado. Mas os dois não entendiam dessas explicações que não estavam na cara. Porque tudo tá na cara. Mistério, escuro, verdade no altar? Embromação, né não? Parecia que era. E um embrião de crise com os livros se instalava? Ah, não. Afinal, foram eles, uniram os dois tão diferentes, nesse papo clichê. Assim, bem rimadinho com a vida, que se vive bem mais clichê. Ficaram continuando lendo e sem dar já tanta importância à leitura. Virou ritual, coisa de se fazer todo dia, cotidiana neutra. Quiçá mecânica. Raimundin falava das teorias dos outros, dessas coisas de que ele já entendia, e Guirigó, pretinho meio ruim de compreender e cabeça muito dura, não tinha ainda assimilado. Por outro lado, Raimundin começou a andar na rua, junto de Guirigó, que lhe ensinava a chutar bola, andar percebendo as paisagens, e até tragar uns cigarros, molhar o bico na caninha. Isso sim já se esperava, afinal se vive pra se relacionar. E trocar. E aprender. Clichê. Isso é. Mas nem por isso é repetido. Viver num tanto do outro pode ser muito inédito. Isso também é clichê, foram os dois descobrindo conforme liam uns livros de estória, empoeirados e esquecidos, soterrados pelos livros cheios de teorias, e reconheciam o retrato do que viviam nas palavras desses caboclos que eles nunca conheceriam, mas que os conhecia.
sábado, 20 de fevereiro de 2010
Batismo
Em uma cabeça - uma alma -, mil coisas podem ser nenhuma. Sendo o oposto no mesmo também possível: uma coisa ou coisa nenhuma podem ser mil.
Do velho garoto tornado e tornando-se - vareiando - uma cabeça é pouco. A cuia transborda e esse transbordamento nem sempre é visto: o encanto é para poucos. Fosse o mundo feito apenas de encantados, a terra desabava no céu. Fosse ele feito apenas de encantadores, seria o céu quem desabava na terra. E multiplicariam-se assim os acidentes nas ladeiras, nas esquinas e nos rios com toda a beleza do que vê os olhos daqueles que se apaixonam. Quem sabe assim o sangue não tivesse um sabor doce que aniquilasse de vez a distância entre a vida e a morte, sendo possível amar e até mesmo desejar tanto as maiores dores quanto as maiores alegrias.
Uma figura que vive assim, que não é nem boa e nem má, sendo boa e/ou má independente para quem, por que ou quando, está finalmente entregue. A esse estado de situação deu-se o nome de Guirigó. Ele - o lugar, o menino -, de onde exortam-se as maiores ingenuidades, e igualmente as maiores espertezas. Ele, o menor de idade, o menos instruído, o não-filho, jogado no paradoxo: o que mais vive, o mais sábio (socraticamente), o mais certo.
Quero então falar de um Guirigó que espera, um Guirigó do silêncio: é que foi feita uma descoberta, uma visão que lhe deu fascínio, e agora ele espera para verde novo. Uma goiabeira ao pé de um morro, carregada de goiabas madurinhas cujo vento forte nos galhos as derrubava e acertava algumas poucas -bem poucas- numa pedra que se extendia próxima à árvore. Essa visão testemunhada uma só vez lhe encheu de desejo de novamente ver, e isto lhe custava dias inteiros. A recompensa durava bem menos que um segundo, mas era o momento, o momento especial da vida. A goiaba estatelava-se, multiplicava-se, transfigurava-se em manchas vermelhas espalhadas sobre e ao redor da pedra.
Como não queria catar as da árvore - num gesto que evitava diminuirem as chances do acerto pedra/fruta acontecer -, Guirigó comia as que caía do chão, se alimentando assim das Goiabas que erravam o alvo.
***
O caminho óbvio para esse Guirigó seria a poesia. Seria fazer do encantado um encantador, e multiplicar o breve momento do encontro da pedra com a goiaba infinitas vezes.
É este um destino imenso. Todas as forças vitais de um moleque concentradas numa efemeridade dispensável. Certa vez teria ele mesmo ouvido num rádio acerca de maravilhas retumbantes criadas pelo homem. Isto deixou-o intrigado, pois estátuas imensas e igrejas deslumbrantes não compunham o cenário do maravilhoso. Num mundo de algumas dezenas de rostos repetidos e outros inúmeros rostos passageiros, uma praça e uma igreja com seu padre chato não ofereciam deslumbramento algum: o menino estava vazio do homem.
E ele que estava habituado a contar histórias, naturalmente agora procurava palavras para dizer o não dito. E o que seria, o que deveria ser feito para isto?
Talvez já houvesse ali toda a resposta, delicadamente moldada pelo silêncio e pela espera. Com o tempo, Guirigó compreenderia que agora renascia, que tinha de inventar outras palavras, porventura perderia algo de sua ingenuidade (e ganharia outras), e crescia nele, sobretudo, uma vontade do que outrora renegara: ler.
E facilmente compreendeu que a palavra que ele tanto queria não era porventura posterior; que aqueles poemas e outros textos que ele lia de frente para a goiabeira (vez ou outra em voz alta), não descreveria o que viam, mas abriam a própria porta do mundo indizível - era a palavra o próprio mundo. A transfiguração do mundo era já a transfiguração do próprio Guirigó.
Em uma de suas primeiras anotações lê-se: "O homem não cria maravilhas, é a própria possibilidade de criar, a maravilha por si", e pouco mais abaixo: "No princípio era o verbo, mesmo".
De tantas a quantas foi o Gurigó já não cabe mais dizer, o que se sabe é que aquele tempo em silêncio e em espera na busca de palavras foi o seu batismo.
Do velho garoto tornado e tornando-se - vareiando - uma cabeça é pouco. A cuia transborda e esse transbordamento nem sempre é visto: o encanto é para poucos. Fosse o mundo feito apenas de encantados, a terra desabava no céu. Fosse ele feito apenas de encantadores, seria o céu quem desabava na terra. E multiplicariam-se assim os acidentes nas ladeiras, nas esquinas e nos rios com toda a beleza do que vê os olhos daqueles que se apaixonam. Quem sabe assim o sangue não tivesse um sabor doce que aniquilasse de vez a distância entre a vida e a morte, sendo possível amar e até mesmo desejar tanto as maiores dores quanto as maiores alegrias.
Uma figura que vive assim, que não é nem boa e nem má, sendo boa e/ou má independente para quem, por que ou quando, está finalmente entregue. A esse estado de situação deu-se o nome de Guirigó. Ele - o lugar, o menino -, de onde exortam-se as maiores ingenuidades, e igualmente as maiores espertezas. Ele, o menor de idade, o menos instruído, o não-filho, jogado no paradoxo: o que mais vive, o mais sábio (socraticamente), o mais certo.
Quero então falar de um Guirigó que espera, um Guirigó do silêncio: é que foi feita uma descoberta, uma visão que lhe deu fascínio, e agora ele espera para verde novo. Uma goiabeira ao pé de um morro, carregada de goiabas madurinhas cujo vento forte nos galhos as derrubava e acertava algumas poucas -bem poucas- numa pedra que se extendia próxima à árvore. Essa visão testemunhada uma só vez lhe encheu de desejo de novamente ver, e isto lhe custava dias inteiros. A recompensa durava bem menos que um segundo, mas era o momento, o momento especial da vida. A goiaba estatelava-se, multiplicava-se, transfigurava-se em manchas vermelhas espalhadas sobre e ao redor da pedra.
Como não queria catar as da árvore - num gesto que evitava diminuirem as chances do acerto pedra/fruta acontecer -, Guirigó comia as que caía do chão, se alimentando assim das Goiabas que erravam o alvo.
***
O caminho óbvio para esse Guirigó seria a poesia. Seria fazer do encantado um encantador, e multiplicar o breve momento do encontro da pedra com a goiaba infinitas vezes.
É este um destino imenso. Todas as forças vitais de um moleque concentradas numa efemeridade dispensável. Certa vez teria ele mesmo ouvido num rádio acerca de maravilhas retumbantes criadas pelo homem. Isto deixou-o intrigado, pois estátuas imensas e igrejas deslumbrantes não compunham o cenário do maravilhoso. Num mundo de algumas dezenas de rostos repetidos e outros inúmeros rostos passageiros, uma praça e uma igreja com seu padre chato não ofereciam deslumbramento algum: o menino estava vazio do homem.
E ele que estava habituado a contar histórias, naturalmente agora procurava palavras para dizer o não dito. E o que seria, o que deveria ser feito para isto?
Talvez já houvesse ali toda a resposta, delicadamente moldada pelo silêncio e pela espera. Com o tempo, Guirigó compreenderia que agora renascia, que tinha de inventar outras palavras, porventura perderia algo de sua ingenuidade (e ganharia outras), e crescia nele, sobretudo, uma vontade do que outrora renegara: ler.
E facilmente compreendeu que a palavra que ele tanto queria não era porventura posterior; que aqueles poemas e outros textos que ele lia de frente para a goiabeira (vez ou outra em voz alta), não descreveria o que viam, mas abriam a própria porta do mundo indizível - era a palavra o próprio mundo. A transfiguração do mundo era já a transfiguração do próprio Guirigó.
Em uma de suas primeiras anotações lê-se: "O homem não cria maravilhas, é a própria possibilidade de criar, a maravilha por si", e pouco mais abaixo: "No princípio era o verbo, mesmo".
De tantas a quantas foi o Gurigó já não cabe mais dizer, o que se sabe é que aquele tempo em silêncio e em espera na busca de palavras foi o seu batismo.
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