sábado, 20 de fevereiro de 2010

Batismo

Em uma cabeça - uma alma -, mil coisas podem ser nenhuma. Sendo o oposto no mesmo também possível: uma coisa ou coisa nenhuma podem ser mil.
Do velho garoto tornado e tornando-se - vareiando - uma cabeça é pouco. A cuia transborda e esse transbordamento nem sempre é visto: o encanto é para poucos. Fosse o mundo feito apenas de encantados, a terra desabava no céu. Fosse ele feito apenas de encantadores, seria o céu quem desabava na terra. E multiplicariam-se assim os acidentes nas ladeiras, nas esquinas e nos rios com toda a beleza do que vê os olhos daqueles que se apaixonam. Quem sabe assim o sangue não tivesse um sabor doce que aniquilasse de vez a distância entre a vida e a morte, sendo possível amar e até mesmo desejar tanto as maiores dores quanto as maiores alegrias.
Uma figura que vive assim, que não é nem boa e nem má, sendo boa e/ou má independente para quem, por que ou quando, está finalmente entregue. A esse estado de situação deu-se o nome de Guirigó. Ele - o lugar, o menino -, de onde exortam-se as maiores ingenuidades, e igualmente as maiores espertezas. Ele, o menor de idade, o menos instruído, o não-filho, jogado no paradoxo: o que mais vive, o mais sábio (socraticamente), o mais certo.
Quero então falar de um Guirigó que espera, um Guirigó do silêncio: é que foi feita uma descoberta, uma visão que lhe deu fascínio, e agora ele espera para verde novo. Uma goiabeira ao pé de um morro, carregada de goiabas madurinhas cujo vento forte nos galhos as derrubava e acertava algumas poucas -bem poucas- numa pedra que se extendia próxima à árvore. Essa visão testemunhada uma só vez lhe encheu de desejo de novamente ver, e isto lhe custava dias inteiros. A recompensa durava bem menos que um segundo, mas era o momento, o momento especial da vida. A goiaba estatelava-se, multiplicava-se, transfigurava-se em manchas vermelhas espalhadas sobre e ao redor da pedra.
Como não queria catar as da árvore - num gesto que evitava diminuirem as chances do acerto pedra/fruta acontecer -, Guirigó comia as que caía do chão, se alimentando assim das Goiabas que erravam o alvo.

***

O caminho óbvio para esse Guirigó seria a poesia. Seria fazer do encantado um encantador, e multiplicar o breve momento do encontro da pedra com a goiaba infinitas vezes.
É este um destino imenso. Todas as forças vitais de um moleque concentradas numa efemeridade dispensável. Certa vez teria ele mesmo ouvido num rádio acerca de maravilhas retumbantes criadas pelo homem. Isto deixou-o intrigado, pois estátuas imensas e igrejas deslumbrantes não compunham o cenário do maravilhoso. Num mundo de algumas dezenas de rostos repetidos e outros inúmeros rostos passageiros, uma praça e uma igreja com seu padre chato não ofereciam deslumbramento algum: o menino estava vazio do homem.
E ele que estava habituado a contar histórias, naturalmente agora procurava palavras para dizer o não dito. E o que seria, o que deveria ser feito para isto?
Talvez já houvesse ali toda a resposta, delicadamente moldada pelo silêncio e pela espera. Com o tempo, Guirigó compreenderia que agora renascia, que tinha de inventar outras palavras, porventura perderia algo de sua ingenuidade (e ganharia outras), e crescia nele, sobretudo, uma vontade do que outrora renegara: ler.
E facilmente compreendeu que a palavra que ele tanto queria não era porventura posterior; que aqueles poemas e outros textos que ele lia de frente para a goiabeira (vez ou outra em voz alta), não descreveria o que viam, mas abriam a própria porta do mundo indizível - era a palavra o próprio mundo. A transfiguração do mundo era já a transfiguração do próprio Guirigó.
Em uma de suas primeiras anotações lê-se: "O homem não cria maravilhas, é a própria possibilidade de criar, a maravilha por si", e pouco mais abaixo: "No princípio era o verbo, mesmo".
De tantas a quantas foi o Gurigó já não cabe mais dizer, o que se sabe é que aquele tempo em silêncio e em espera na busca de palavras foi o seu batismo.

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