O tempo era de carnaval. Todo mundo se sentia por igual, irrestrito e festivo. Por lá a festança ainda não havia sido institucionalizada. Carnaval não é no mês de fevereiro, semana de festa com alegorias e adereços pra turista ver. Basta um gaiato bem alto gritar “È carnaval” e uma boa dúzia de fogos ribombar estrondosa pelo céu, que pronto, é carnaval! A notícia se espalha mais rápido que fogo em fio de pólvora, o boca-boca faz-se da maior e mais feliz utilidade, e quando dá-se conta, o amontoado de pierrôs, colombinas, batuqueiros, palhaços e bate-bolas, reis de baralho, bailarinas e princesinhas já tomou conta da pracinha e das vielas; e até os quintais maiores, dos senhores mais abastados, viram terreiro de samba e batucada. A felicidade passageira e fugidia enche o peito dos foliões, a tristeza é expurgada em bebedeiras homéricas; garrafas caem pelo chão, comadres ganham passadelas de mão nada comportadas, malandro faz ganho com a carteira do irmão e até o padre se fantasia de mulher, quem sabe pondo pra fora nesses dias de delírio coletivo seu desejo secreto e reprimido. O negócio é que a cidade incandesce em mil cores pelo céu e pelo chão, o cheiro do lança-perfume bota as virgens em delírio, e os sons, quase sempre desencontrados, dão ritmo à loucura coletiva e vivaz do povo, que goza dessa liberdade em liturgia, já esquecido das agruras na roça, dos comércios pouco lucrativos, das diferenças sociais e da seca e reles importância que a vida tem nesse lugar.
As brigas estancavam e pululavam em cada canto da praça, os gritos e uivos de alegria enchiam a noite e as estrelas sumiam no céu, tão grande a luminosidade e ascendência dos fogos de artifício. Os confetes e as serpentinas, a purpurina, as cornetas e a alegria pareciam brotar da alma de cada um, e emanavam um cheiro de mofo, de felicidade guardada muito tempo lá no fundo, esquecida às traças e só trazida à tona nesses momentos extremos. Lá parecia que ninguém gozava daqueles efêmeros momentos de felicidade que gotejam todo dia pela vida de qualquer mortal. Lá a felicidade e a tristeza traziam consigo aquela cota de sem conta. Ou o tempo era de estafo, de picuinhas e cabeça baixa, ou chegava o carnaval, que podia ser mensal, semanal ou anual, e dava fim à mazela coletiva numa lavada de alma. É verdade que esse estado cotidiano de tristeza sem fundo não era assim tão evidente à olhos nus e frios; naquele lugarejo tão pacato, tão adepto da sesta e da serenidade, os matutos, as comadres e até a gurizada mantinha maquiado no rosto um sorriso melancólico, um gracejo de felicidade ilusório, que só se tornava realmente verdadeiro e visceral quando um bom espírito de gaiato proclamava aos altos brados e ensurdecedores fogos de artifício a chegada do carnaval. A partir daí, tudo parecia permitido, e os habitantes possuídos por um espírito de amor e comoção festejavam o carnaval enquanto o mundo todo conspirava contra. Cabeça baixa, amores rompidos, seca na horta, falta de água pro feijão e dor-de-cabeça da mulher eram esquecidos, e à partir daí o que valia realmente a pena era a expurgação, os bailes proibidos; as brigas infundadas que faziam o sangue escorrer pelo rosto fustigado pelas agruras de uma vida sem ilusões. A saga da noite sem fim na cama da mulher do irmão, ou a sobrinha que dormia com o marido da tia já eram sempre perdoados por antecipação pelo deus anônimo responsável por aquela comoção coletiva. E estouravam os fogos abençoando em seita os habitantes no espírito da comemoração extasiada.
E quem sentado no meio fio assistia a tudo isso com o peito em chamas, com um sorriso frouxo de regozijo na cara, se sentindo nessas épocas, sim, em casa, era Guirigó. Naquele dias de carnaval tresloucado o moleque sentia inocentemente que as suas capetagens e maquinarias ganhavam um estatuto de permissão. Com toda aquela gente ali, irreconhecível, com a cidade assim, de pernas pro ar, as traquinagens que ele armava perdiam a importância, ou melhor, pareciam constitucionalizadas, parte fiel da inundação de loucura que tomava conta do lugar. E o moleque se ria e se divertia entrando de baixo da saia das mulheres, sambando desengonçado no meio do tumulto, batendo carteira dos desavisados, botando pé na frente e gargalhando cada vez que um bebum sem rumo se escangalhava todo de cara no chão. A felicidade do pretinho era tanta que o sorriso parecia que ia lhe rasgar a cara de tão grande, e os olhos imprensados ficavam tão pequinininhos quanto uma sementinha de mamão. E ele ria extasiado, e plantava bananeira e bebericava da pinga dos foliões e bolinava as moças desavisadas.
Nesses dias de culto de felicidade coletiva o estabelecimento que mais lucrava no lugar era o puteiro. A cafetina era malandra e aproveitava a loucura geral, o esquecimento dos laços matrimoniais e sentimentais, e armava os maiores e mais lunáticos bailes que a cidadezinha já presenciou. Quando já suados, bêbados e cansados de tanto pular e brincar desde cedo debaixo do sol fustigante, a cambada rumava pro prostíbulo já roucos, tontos e carentes de censura, loucos para aproveitar as delícias que o meretrício tinha a oferecer. E foi um grupo que passava pela pracinha, já doidos de tanto dançar e gritar e pular, e que rumava pro famoso baile, que decidiu apresentar o lugar praquele pretinho doido, que se perdia, também já possuído pelo espírito lunático do carnaval, no meio da roda de samba. Guirigó, que não era bobo nem nada, rumou junto com os gaiatos pro puteiro, inquieto de curiosidade e ansiedade. Apesar de malandro, desconfiavam que o guri nunca tinha visto uma moça nua. Quando chegaram no antro, a festa já estava no auge e a cambada trocava suor e saliva iluminados por uma luz vermelha insana. E era nego sentado no balcão com puta no colo, nego caído no chão com puta em cima, e nego gritando e cantando e pulando e puta com os peitos pra fora, que Guirigó ficou muito impressionado e com vontade até de sair correndo daquele lugar. O moleque viu de tudo lá, mulher gorda com peito caído e rosto bonito, magrela com as costelas amostra, sem dente, mas com os olhos de um brilho solar, viu mulata rabuda que parecia ligada na tomada de tanto sambar e uma morena linda que contrastava seus olhos verdes e seu corpo harmonioso com o desbunde barato do lugar. O gaiato mais solto do grupo, e que havia notado o embaraço e o deslumbre medroso de Guirigó frente a tal novidade e loucura, decidiu descolar uma puta pra ele, pra levá-lo prum quarto lá em cima, onde o tumulto era menor e o moleque ficaria mais calmo, além de por tabela perder o cabaço que, segundo o pessoal, já havia passado da hora. A designada pra tarefa foi Ruth, uma ruiva dos peitos pequenos, uma bundinha respeitável, e dona de uns olhos azuis brilhantes; mas que perdiam a atenção pro nariz imenso que tomava conta do relevo de seu rosto. Diziam que ela era a puta mais carinhosa e atenciosa do lugar, e por isso mesmo a mais indicada para Guirigó que iniciaria, em meio aquela temeridade e insensatez coletiva, sua vida sexual. Chegado lá em cima com Ruth, o moleque era só tremedeira; seu descaso frente as convenções, sua natureza espevitada e seus trejeitos malandros haviam ficado lá fora, na rua junto com os foliões tresloucados, com os fogos loucos e as fantasias eloqüentes. Ficou impressionado com o vermelho muito vivo daquela boca que o mandava deitar na cama de lençóis já empapados de suor, e daquelas unhas, que acariciavam seu corpo num carinho relaxante, mas que só o deixava mais cabreiro. Quando a meretriz começou a despi-lo bem devagar, com um carinho maternal, Guirigó começou a relaxar e a se dar conta que seu pintinho começava a subir. Gostou da sensação e se deixou levar pelas carícias e sorrisos de Ruth, a ruiva; que já a esse ponto começava também a se despir. Só que quando Guirigó se deparou com a nudez da rapariga o tumulto foi geral. O moleque deu de cara com uma mata ruiva no ventre da mulher e se alvoroçou todo, muito assustado e descrente do que nunca tinha visto. Bradou e bradou a plenos pulmões que a boceta de Ruth estava pegando fogo. Se levantou num só pulo, sempre gritando:
- Fogo! Fogo! Fogo! Tá pegando fogo! Tá pegando fogo!
Desceu as escadas num pinote só e gritava e bradava e berrava fogo, fogo, fogo! E foi aquele rebuliço, aquela confusão no baile! Era pierrô bêbado correndo pra lá, derrubando a mulata da bunda grande pra cá, que caía por cima de capiau acolá. A puta que a essa altura fazia um strip pra galera, trepou mais e mais alto no ferro pra não ser também levada pela maré de bêbados assustadíssimos e malucos que saíam correndo numa onda de insanidade. E foi garrafa de cerveja quebrando no chão, e serpentina enrolando no pescoço, e peito caído pulando e gritaria e todo mundo repetia:
- Fogo! Fogo! Fogo! Tá pegando fogo!
E a notícia de que lá em cima estava pegando fogo se alastrou tão rápido pelo puteiro que o saldo da confusão, entre mortos e feridos, foram mil trezentas e quarenta e cinco garrafas de cerveja quebradas e não pagas, oitocentas e trinta de pinga, no mesmo estado. Mil e quarenta e sete coxinhas, quinhentos e trinta e sete quibes, noventa e oito máscaras, setecentos rissoles, setenta e três chapéus, seiscentos e quatro pratos, quinhentas e vinte e sete máscaras de monstro, novecentas e oito embalagens de camisinha fechadas (fora as mil e três usadas), três mil copos, cinquenta e seis bolas de bate-bola, oitocentos cordões de havaiano, quinhentas e três perucas coloridas, quinze dentes, treze mulatos, cinco sararás, um assessor do prefeito, dois bêbados incontestáveis, o negão centroavante do time da cidade, cinco músicos e trinta e três putas jogados e pisoteados pelo chão.
A multidão que fugiu alarmada do baile no puteiro nem bem se deu conta de que era alarme falso. Na verdade, pouco estavam ligando. Depois de supostamente terem salvo sua vida, tinham mais e mais e mais motivo pra se largar à expurgação coletiva de ritmos, ritos, danças, bebedeiras e brigas que continuava e perdurou sabe-se lá Deus quanto tempo naquela cidadezinha perdida por aí, em algum lugar desse mundão. Guirigó? Guirigó dizem que ficou um tempo sumido do lugar por causa da confusão que armou. Há quem acredite que ele ficou foi com vergonha do cabaço que ainda perdurava e há quem diga que ele só seguiu o seu impulso. Sempre teve medo do fogo e preferiu não ir com ele, preferiu fugir rua afora, sonho afora pelo carnaval. Carnaval que naquele lugar é de rua, e não precisa de calendário. Faz-se num salão a céu aberto e com entrada franca, sem cambista nem desfile pra turista ver. No fim, Guirigó, de verdade, nem tinha participado do baile do puteiro, Guirigó só acredita no que é grande e no que é o todo, ruas e sonhos afora.
quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009
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Um comentário:
Hola, pasando a saludar y tambien para invitarte a que pases y veas mi blog a ver si encuentras algo de tu agrado y si te gusta intercambiemos enlaces, una especie de fucionar dendritas o algo asi diria yo,je.
Saludos y hasta la proxima.
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