terça-feira, 21 de abril de 2009

Rotineiro

O dia passou.


No início ele prometeu ser lindo. O sol que nasceu amarelo iluminou de frescor o lugar. A partir daí cada um abandonava sua cama, seguindo ordem ou causa. Uns despertavam no cantar do galo, outros, mais naturalistas, só respeitavam o fastio do próprio sono. Outros seguiam motivos mais pontuais. Certa senhora, insone, noite perdida em claro a contemplar o hino dos grilos, era aliviada que recebia o primeiro raio de sol. Na outra esquina, outra senhora, também insone, havia perdido a noite velando o ronco alto do marido, e era com ódio que tomava consciência da noite em claro, e a separação era caso, agora mais do que nunca, resolvido. Na casa de janela grande, certo moleque não agüentava o recado do sol, que enchia seu quarto de luz, e avisava que era hora da rotina.
Aí vinha a hora do desjejum, do pão com manteiga, do café com leite. Tudo ali seguia o roteiro da simplicidade. As coisas nesse lugarejo impensado aconteciam por simples continuação de fatos desencontrados. Tudo acontecia por que sim, implicando-se a si mesmo, e independendo de si próprio. A calma, a serenidade e a dependência da sorte; as rixas que perduravam, os motivos esquecidos, os amores não vividos; a cueca suja, a meia encardida; a barba por fazer, as olheiras a disfarçar, a raiva a abafar; tudo isso é rotina, é vida, e por ali, acontecia porque sim, e sabe-se lá desde quando.
Café tomado e cara lavada. Dentes escovados e o lugarejo desperto. A partir daí a rua vivia, um e outro ia saindo, encontrando compadre, dando bom dia. As lojinhas mutiladas rangiam suas portas, as folhas ficavam mais verdes, a poeira mais alta, o céu mais azul; e as torneiras rugiam, enquanto as donas-de-casa lavavam a roupa do marido e da molecada, e trocavam palavras por cima do muro baixo. Os copos dos bêbados convictos começavam a se encher, os cachorros passeavam sem rumo e os gatos iam dormir; os pregadores assumiam seus postos na pracinha e a moça mais bonita da cidade adoçava o ar por onde passava e fazia malandro torcer o pescoço; enquanto os sentimentos mais puros cochilavam nos peitos, o fulgor se esvaía e o lugar refogava na sutileza da rotina.

Foi uma boa manhã.

Daí veio a hora do almoço, hora de parar. É, por ali tudo parava pra hora do almoço. O tilintar dos talheres ressoava em uníssono, os dentes mutilavam carnes e a roça terminava sua missão, morta na boca. Depois batia aquele sono, aquela moleza. E todo mundo; sim, todo mundo tirava sua sesta. Tinha moleque que entrava em rixa com a mãe. Ora, o guri não quer saber de dormir. Já não basta a hora do almoço, hora que quebra a manhã de brincadeiras, de bicudas na bola, de pião no asfalto, agora vinha a hora do cochilo. Mas moleque não quer saber de cochilo, quer ir pra rua; mas ah, o que se há de fazer?, a mãe obriga. Tem que dormir! Quinze minutinhos, cinco que fossem... e a molecada ia, a contragosto, fechar os olhos, contar o tempo nos dedos e levantar antes dos três, se dizendo descansada e pronta pra tarde promissora. Mas a cidade dos homens ainda boiava no torpor das duas da tarde. Hora mais estática, mais sufocante, mais angustiante do dia. Folhas todas paradas, telhas quentes, asfalto e barro seco fumegantes, e a sesta era uma mistura de trégua e suor.
Enquanto isso nada de nuvens se acumulando pelo céu, e a volta ao trabalho ou a continuação da bebericagem no boteco era saldada por uma lona azul límpida. A tarde, então, transcorria sem grandes alardes.
Por ali a escolinha só tinha aula à tarde, e ensinava, muito mal, a ler e escrever. Por essas horas havia uma movimentação tímida pelos seus arredores. Os freqüentadores da escola, diziam por ali, eram todos uns pobres sonhadores, uns iludidos, que ainda tinham fé ou esperança na erudição, no aprender alguma coisa por meio daquelas letrinhas embaralhadas.
Tanto faz na escola ou no puteiro, no curral ou na sala do delegado, na primeira casa depois que passa o campinho ou na cabeça da menininha virgem e apaixonada, a tarde naquela cidade malfadada parecia durar uma eternidade. Só se ouviam uns poucos pássaros cantores, uma caminhoneta velha entregando gás, uma ou outra música cafona enchendo o coração de um corno ou outro, e o ronco do prefeito, que de pernas pro ar, estendia a sesta pela tarde inteira, gozando, diziam, da única vantagem de ser prefeito por ali: o ar condicionado.
O transcorrer da decaída do sol pelo céu começava a ser acompanhado por uma brisa leve, que chacoalhava as folhas das amendoeiras da rua, e fazia voar o pó acumulado nos postes e placas. Lá pelas cinco, a tarde era quase agradável. Os passarinhos cantavam felizes e agitados, cada qual procurando seu lugarzinho no galho pra dormir. Os comerciantes, o moço da farmácia, o do açougue, o da casa de material de construção e o da mecânica, eram tomados por uma quase satisfação, já que a hora de ir embora estava perto. O bar começava a receber os amigos em busca de papo furado, e os encontros mais inesperados e os diálogos mais inusitados vez por outra se davam por ali.
O anoitecer era vermelho e quase mudo, se não fossem as cigarras anunciando o mesmo sol pro outro dia.

Foi mais uma tarde das muitas.

A noite, então, veio, como conseqüência natural da tarde, que havia sido a conseqüência natural da manhã. Quando o sol se punha, alguns seres enfurnados e anônimos durante o dia, povoavam as ruas, e algumas das figuras matutinas travavam encontros promissores com elas. Saíam, à noite, acima de tudo, muitos mosquitos. Mas eram muitos mesmo... e mais alguns cupins que ficavam num sobrevôo inquieto em volta da luz dos postes. Na verdade, desses aí o pessoal não gostava muito. Boas mesmo eram as moças cheirosas, de cabelo molhado, boca colorida, unha comprida e papo mole que apareciam pelas esquinas. Tinha nego que passava o dia inteiro sonhando com elas. Diziam pelas redondezas que naquele lugar as quengas eram as melhores.
Lugar que parecia só funcionar bem à noite, era o bar. O da sinuca então, que ficava do lado da casa do Nestor, era sempre o mais cheio. E era papo pra lá, cerveja pra cá. E sinuca acolá, e pinga de cá. O lugar aparentemente ficava muito animado. Mas, na verdade, era só um bando de marmanjos, reclamando, chorando as pitangas e agruras do dia. Uns se diziam engabelados por certo cliente espertalhão, outros reclamavam da falta de eficiência no atendimento do banco. E a merda que estavam as laranjas no sacolão, e o filho da puta do patrão, e aquele centroavante perna de pau. Uns mais sensíveis despejavam suas chagas mal curadas e seus amores mal resolvidos nos ouvidos amigos. Às vezes também pipocava uma briga, e quase sempre por causa de mulher. Mas hoje não, briga não ia acontecer por ali; estavam todos neutros, meio tranquilos e desanimados, só preocupados em beber sua cerveja, discutir o jogo de domingo e as probabilidades de chuva pros próximos dias.
E a noite assim ia acabando. Uns crentes iam à igreja, uns namorados visitavam a namorada, uns barrigudos jogavam uma pelada no campo, uns moleques fumavam escondidos na praça, uns vaga-lumes piscavam no mato e a desesperança comprimia quase todo mundo.



Hoje não aconteceu nada naquele lugar simples, infame e esquecido; e Guirigó, agora, enquanto contemplava as estrelas deitado no chão, cabeça no meio-fio, pensava no seu sonho da noite passada. No tal sonho, uma mulata linda, com olhos grandes e sorriso no rosto, havia lhe avisado que hoje seria um dia muito especial. Guirigó, que era moleque onipresente em todo canto da cidadezinha, ficou inquieto esperando o tal acontecimento peculiar e promissor. Acabou não vendo nada demais acontecer. Nem suas habituais aventuras ele havia empreendido. Passou o dia perambulando por aí, a esmo, sem fazer nada, contando as horas, ansioso, e tentando preenchê-las com qualquer banalidade, pra hora da coisa especial acontecer. Mas agora, o dia passou, era quase meia-noite e a única coisa interessante era o brilho lá no alto das estrelas. Olhando pra elas, tão bonitas, lá em cima; cada uma mais cintilante e feliz que a outra, Guirigó quase acreditou que esse era o acontecimento peculiar.
Há quem diga que o cotidiano é sublime e que cada dia é especial. Há quem acredite na potência poética da rotina. Talvez o acontecimento tão esperado por Guirigó tenha sido o dia em si, a manhã clara, promissora; a tarde quente, angustiante, banal, e a noite fresca, estranha e velha conhecida. Mas, é... naquele dia não aconteceu nada demais.

Daqui a pouco começa outro dia.

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