sexta-feira, 13 de novembro de 2009
O aprendiz
Guirigó aprendeu a ler. E não sabia? Parece que não. Aprendeu ensinado? Vai saber... Talvez pelas migalhas que ele tentava catar das aulas na escolinha que caía aos pedaços. Ou então do nada? Do nada. Belo dia tudo fazia sentido, o antes amontoado de símbolos desregrados agora passava mensagem. Por ali aconteciam milagres. Pois é... O que se sabe, é que o moleque parecia não saber, e agora sabia; ler. Como sabia-se? E não era que ele não saía da frente da escola, da banca, da farmácia, da casa do seu Roberto, que diziam ter uma biblioteca de livros irrelevantes. Não dispensava bula de remédio, cartaz no poste, propaganda, jornal, revista, verso de xampu. Lia e lia e lia. E todo mundo muito admirado. E o moleque atrás de qualquer pedaço de papel escrito. Qualquer símbolo, qualquer sentido. Guirigó queria mesmo era praticar sua nova descoberta. Relia, relia. O padre, esperto como só, deu-lhe logo uma bíblia. “Lê meu filho, é a palavra do Senhor, é a salvação!” E o guri feliz, trocentas folhas, capa e contracapa. Um livro de verdade. E se pôs a devorá-lo. “Ih, andam dizendo que aquele capetinha agora lê, e lê é a bíblia. Ora, vê se pode?!” E não era só: lia o jornal. Ou melhor, lia as manchetes. E foi aprendendo que existiam mais lugares pra além da sua cidadezinha. Lugares outros, com acontecimentos de muitas várias coisas. E ele tão ali, tão dali, tão satisfeito com o grandão do céu, com o sopro de vento, com a pelada do campo, com as árvores tão sós, começou a se sentir insatisfeito. Tinham muitos mais lugares por aí! Isso tudo aqui, é só um tiquinho, uma migalhinha. Existe até vida pra depois da vida, pra depois de tudo isso que eu faço aqui, mais do que dia depois outro, depois outro, e mais outro dia, tem uma tal de vida. E isso é conceito construído e registrado! Tem gente que até a perde. Assim, do nada vem algo. Pimba! Mas ó, pode ser que daí não acabe, a Bíblia diz de céu e paraíso! Se eu fizer tudo certinho, eu vou pra lá. Ah, se vou. Paraíso era um nome tão bonito, lá deviam de ter muitas mulheres da vida pra gente namorar, muita atiradeira pra matar calango, muita pipa, pião, muito torresmo com feijão. E televisão pra assistir e colchão macio pra hora de dormir. E ele, que nunca teve nada disso, pode por lá ter! Esse livro grandão ensina tudo, tudinho. Eu vou por ele! E Guirigó parou na porta da igreja, o padre viu, mandou entrar. Ressabiado, sim. E mais que ele, as beatas, já tantas vezes vítimas das capetices do menino. Mas ele dessa vez respeitou, sentou quieto, contradizendo a sua natureza, e ouviu o sermão do início ao fim, muitíssimo interessado. O padre gostou, suspirou. “Esse menino tem salvação!” Nas semanas seguintes, Guirigó já freqüentava a missa com assiduidade e interesse crescentes. Arrumou uma camisa de sair e uma calça meio curta, mas muito elegante. Um sapatinho brilhoso e uns números além do seu. Uma gravatinha grená e a alma limpa. As beatas e a bíblia que lhe deram. Nada mais de pipa, pé sujo pelo chão, cochilo pelos cantos da praça. Agora Guirigó passava o dia na biblioteca de seu Roberto, lendo teorias e decifrando mundo. E à noite ia à missa, escutar as palavras bonitas e as promessas do seu padre. Guirigó ganhou então uma lente e um afastamento. Ele antes tão víscera, tão vida e sujeira, tão vivo, agora decifrava e interpretava de acordo com o que os livros diziam. Tudo à volta ganhava teoria, ganhava sentido, ganhava amarra. E o guri agora usava brilhantina no cabelo, goma na camisa e em cima de tudo o que lhe diziam, ele tinha uma referência. Fulano disse isso, cicrano já descobriu isso, não, não, não sei onde, não fica lá pra riba, é lá pro sul. Referência, orientação. O moleque parecia uma enciclopédia. Sabia daqui e do além, do paraíso. O padre disse que para lá ele ia, e quase que o guri não se agüentava de ansiedade. Ia perdendo sua pureza, sua inocência, sua poesia? A vida agora era de signos, de significados ensinados. E muita, muita expectativa e projeção. O espanto, a beleza da estréia iam se perdendo. A espontaneidade da vida ia ficando pelo caminho. Há quem diga que o moleque nem mais olhava pro céu, pra ver se vinha chuva ou sol pro outro dia. A lua, antes destinatária de assovios e angústias, agora satélite cinza, sem graça pairava no alto. Não ligava mais pras festas nem pros sambas, não aprontava traquinagens, não levantava saia de mocinha nem roubava cachaça de capiau bobão. Agora o pretinho era um estudioso, se preocupava com suas ações, em se manter limpo e comedido. Desse jeito ganhou a simpatia das pessoas e virou praticamente o talismã das beatas. Lhe davam o de comer, lhe arrumaram um quartinho pra dormir, com fronha limpa e lençol cheiroso. Banho? Agora era duas vezes por dia, e quando frio fazia, era morninho. Escovava os dentes, assoava o nariz e penteava o cabelo. Nunca mais admirou o vôo louco das borboletas nem o cantar dos passarinhos. Nunca mais prestou atenção pra esses coisas tão bobonas, tão correntes, tão irrelevantes. Nos livros tinha tudo, já haviam observado isso por ele, conceitualizado e domesticado as atitudes, os sentimentos, e o mundão que ele achava vasto só pelo que via, agora era pequeno. Continuava imenso só porque ele sabia que tinha mais, por que imaginava as coisas que lia, as projetava. Agora pra Guirigó tudo tinha um fundo e uma conseqüência. Guirigó se transformava num menino de cultura. E o que mais se ouvia pelos bares, pelas lojas, pela praça, pelos certos e errados da cidadezinha era: “É, demorou, mas parece que agora o menino cresceu. Guirigó tá virando HOMEM!”
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Um comentário:
seus coisas!!! vcs fazem um blog legal pra caramba e eu nem fico sabendo!? Estou me sentindo esquecida viu!???
rsrsrs
saudades meninos
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