quinta-feira, 13 de maio de 2010

Não é por nada, não

Guirigó nessa de ler. E lia lia lia. Ajuntava conhecimentos. Pretinho impetuoso, e agora, além de tudo, simpático aos olhos dos outros. Bem visto. Isso já se disse: o moleque só vivia trancado na biblioteca do seu Roberto, cismado de ler. Não queria saber de amizade, interação conversa. Estava era focado. Queria engolir tudo duma vez, nem mastigava. Problema foi que seu Roberto tinha um filho de quatro olhos, pele pálida e expressão cinza. Quase que ninguém conhecia o guri, de tanto que ele vivia enfurnado em casa. Até que certo dia, enquanto os dois dividiam a fechada sala dos livros, cada um de cara enfiada no seu, se fez um barulho fininho que foi um estrondo. Ritual quebrado! Lápis cotoco do pretinho que caía no chão, rolava rolava e parava no pé da mesa do quatro-olhos. Esse que olhou, pensou se, pegou e andou até o pretinho, já conhecido e admirado por ele das histórias de traquinagem que ouvia o pai contar. Era por pura timidez que nunca tinha abordado Guirigó, agora freqüentador assíduo de todo dia toda hora na sua casa. “- É teu?” “- É.” Gesto e silêncio. “Bem te conheço...” “É? Pois nunca que te vi”. “Raimundin, meu nome” Guirigó achou muita graça dos gestos curtos e enferrujados, e daquele assessório de velho apoiado no nariz do moleque. Apesar, sentiu simpatia. Deu brecha. Dali pros dias adiante foram ganhando intimidade. Conversavam mais era das coisas de livro, Raimundin sabia muito. Aqueles papos de teoria, de contas, de histórias muito velhas. Guirigó admirado, chegou a perguntar se aquele negócio de duas lentes apoiado no nariz tinha algum poder mágico, de fazer saber das coisas. Raimundin quatro-olhos muito se riu, desengonçado, como se não acostumado a isso, e disse que não. Amizade essa estranhada por seu Roberto, os dois tão diferentes. Trocavam idéias. Idéia dessas sem muito fundo, de papo furado. Até que Raimundin perguntou por quê de Guirigó ter largado aquela vida tão solta pela rua, de fazer o que quiser, numa liberdade de calar ou gritar. Guirigó isso não soube responder. E isso ficou rebatendo na sua cabeça. Feito pensamento não formado, idéia em feto. Noutro dia retrucou: “Não é por nada não, mas e tu, por que é que não sai de casa? Nunca te vi na rua...” E isso ficou rebatendo na cabeça de Raimundin, que também não soube resposta. Vida que não dá pra explicar. Será que os dois pensaram? Só eram assim por simples ser. E os livros? Eles explicavam, baseados até no dia de nascimento, na posição das estrelas. Forjavam até personalidade, baseados nuns papos de psicologia, e em algumas muitas outras coisas. Tudo tinha explicação, e dava pra saber o porquê de ser assim assado. Mas os dois não entendiam dessas explicações que não estavam na cara. Porque tudo tá na cara. Mistério, escuro, verdade no altar? Embromação, né não? Parecia que era. E um embrião de crise com os livros se instalava? Ah, não. Afinal, foram eles, uniram os dois tão diferentes, nesse papo clichê. Assim, bem rimadinho com a vida, que se vive bem mais clichê. Ficaram continuando lendo e sem dar já tanta importância à leitura. Virou ritual, coisa de se fazer todo dia, cotidiana neutra. Quiçá mecânica. Raimundin falava das teorias dos outros, dessas coisas de que ele já entendia, e Guirigó, pretinho meio ruim de compreender e cabeça muito dura, não tinha ainda assimilado. Por outro lado, Raimundin começou a andar na rua, junto de Guirigó, que lhe ensinava a chutar bola, andar percebendo as paisagens, e até tragar uns cigarros, molhar o bico na caninha. Isso sim já se esperava, afinal se vive pra se relacionar. E trocar. E aprender. Clichê. Isso é. Mas nem por isso é repetido. Viver num tanto do outro pode ser muito inédito. Isso também é clichê, foram os dois descobrindo conforme liam uns livros de estória, empoeirados e esquecidos, soterrados pelos livros cheios de teorias, e reconheciam o retrato do que viviam nas palavras desses caboclos que eles nunca conheceriam, mas que os conhecia.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Batismo

Em uma cabeça - uma alma -, mil coisas podem ser nenhuma. Sendo o oposto no mesmo também possível: uma coisa ou coisa nenhuma podem ser mil.
Do velho garoto tornado e tornando-se - vareiando - uma cabeça é pouco. A cuia transborda e esse transbordamento nem sempre é visto: o encanto é para poucos. Fosse o mundo feito apenas de encantados, a terra desabava no céu. Fosse ele feito apenas de encantadores, seria o céu quem desabava na terra. E multiplicariam-se assim os acidentes nas ladeiras, nas esquinas e nos rios com toda a beleza do que vê os olhos daqueles que se apaixonam. Quem sabe assim o sangue não tivesse um sabor doce que aniquilasse de vez a distância entre a vida e a morte, sendo possível amar e até mesmo desejar tanto as maiores dores quanto as maiores alegrias.
Uma figura que vive assim, que não é nem boa e nem má, sendo boa e/ou má independente para quem, por que ou quando, está finalmente entregue. A esse estado de situação deu-se o nome de Guirigó. Ele - o lugar, o menino -, de onde exortam-se as maiores ingenuidades, e igualmente as maiores espertezas. Ele, o menor de idade, o menos instruído, o não-filho, jogado no paradoxo: o que mais vive, o mais sábio (socraticamente), o mais certo.
Quero então falar de um Guirigó que espera, um Guirigó do silêncio: é que foi feita uma descoberta, uma visão que lhe deu fascínio, e agora ele espera para verde novo. Uma goiabeira ao pé de um morro, carregada de goiabas madurinhas cujo vento forte nos galhos as derrubava e acertava algumas poucas -bem poucas- numa pedra que se extendia próxima à árvore. Essa visão testemunhada uma só vez lhe encheu de desejo de novamente ver, e isto lhe custava dias inteiros. A recompensa durava bem menos que um segundo, mas era o momento, o momento especial da vida. A goiaba estatelava-se, multiplicava-se, transfigurava-se em manchas vermelhas espalhadas sobre e ao redor da pedra.
Como não queria catar as da árvore - num gesto que evitava diminuirem as chances do acerto pedra/fruta acontecer -, Guirigó comia as que caía do chão, se alimentando assim das Goiabas que erravam o alvo.

***

O caminho óbvio para esse Guirigó seria a poesia. Seria fazer do encantado um encantador, e multiplicar o breve momento do encontro da pedra com a goiaba infinitas vezes.
É este um destino imenso. Todas as forças vitais de um moleque concentradas numa efemeridade dispensável. Certa vez teria ele mesmo ouvido num rádio acerca de maravilhas retumbantes criadas pelo homem. Isto deixou-o intrigado, pois estátuas imensas e igrejas deslumbrantes não compunham o cenário do maravilhoso. Num mundo de algumas dezenas de rostos repetidos e outros inúmeros rostos passageiros, uma praça e uma igreja com seu padre chato não ofereciam deslumbramento algum: o menino estava vazio do homem.
E ele que estava habituado a contar histórias, naturalmente agora procurava palavras para dizer o não dito. E o que seria, o que deveria ser feito para isto?
Talvez já houvesse ali toda a resposta, delicadamente moldada pelo silêncio e pela espera. Com o tempo, Guirigó compreenderia que agora renascia, que tinha de inventar outras palavras, porventura perderia algo de sua ingenuidade (e ganharia outras), e crescia nele, sobretudo, uma vontade do que outrora renegara: ler.
E facilmente compreendeu que a palavra que ele tanto queria não era porventura posterior; que aqueles poemas e outros textos que ele lia de frente para a goiabeira (vez ou outra em voz alta), não descreveria o que viam, mas abriam a própria porta do mundo indizível - era a palavra o próprio mundo. A transfiguração do mundo era já a transfiguração do próprio Guirigó.
Em uma de suas primeiras anotações lê-se: "O homem não cria maravilhas, é a própria possibilidade de criar, a maravilha por si", e pouco mais abaixo: "No princípio era o verbo, mesmo".
De tantas a quantas foi o Gurigó já não cabe mais dizer, o que se sabe é que aquele tempo em silêncio e em espera na busca de palavras foi o seu batismo.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O aprendiz

Guirigó aprendeu a ler. E não sabia? Parece que não. Aprendeu ensinado? Vai saber... Talvez pelas migalhas que ele tentava catar das aulas na escolinha que caía aos pedaços. Ou então do nada? Do nada. Belo dia tudo fazia sentido, o antes amontoado de símbolos desregrados agora passava mensagem. Por ali aconteciam milagres. Pois é... O que se sabe, é que o moleque parecia não saber, e agora sabia; ler. Como sabia-se? E não era que ele não saía da frente da escola, da banca, da farmácia, da casa do seu Roberto, que diziam ter uma biblioteca de livros irrelevantes. Não dispensava bula de remédio, cartaz no poste, propaganda, jornal, revista, verso de xampu. Lia e lia e lia. E todo mundo muito admirado. E o moleque atrás de qualquer pedaço de papel escrito. Qualquer símbolo, qualquer sentido. Guirigó queria mesmo era praticar sua nova descoberta. Relia, relia. O padre, esperto como só, deu-lhe logo uma bíblia. “Lê meu filho, é a palavra do Senhor, é a salvação!” E o guri feliz, trocentas folhas, capa e contracapa. Um livro de verdade. E se pôs a devorá-lo. “Ih, andam dizendo que aquele capetinha agora lê, e lê é a bíblia. Ora, vê se pode?!” E não era só: lia o jornal. Ou melhor, lia as manchetes. E foi aprendendo que existiam mais lugares pra além da sua cidadezinha. Lugares outros, com acontecimentos de muitas várias coisas. E ele tão ali, tão dali, tão satisfeito com o grandão do céu, com o sopro de vento, com a pelada do campo, com as árvores tão sós, começou a se sentir insatisfeito. Tinham muitos mais lugares por aí! Isso tudo aqui, é só um tiquinho, uma migalhinha. Existe até vida pra depois da vida, pra depois de tudo isso que eu faço aqui, mais do que dia depois outro, depois outro, e mais outro dia, tem uma tal de vida. E isso é conceito construído e registrado! Tem gente que até a perde. Assim, do nada vem algo. Pimba! Mas ó, pode ser que daí não acabe, a Bíblia diz de céu e paraíso! Se eu fizer tudo certinho, eu vou pra lá. Ah, se vou. Paraíso era um nome tão bonito, lá deviam de ter muitas mulheres da vida pra gente namorar, muita atiradeira pra matar calango, muita pipa, pião, muito torresmo com feijão. E televisão pra assistir e colchão macio pra hora de dormir. E ele, que nunca teve nada disso, pode por lá ter! Esse livro grandão ensina tudo, tudinho. Eu vou por ele! E Guirigó parou na porta da igreja, o padre viu, mandou entrar. Ressabiado, sim. E mais que ele, as beatas, já tantas vezes vítimas das capetices do menino. Mas ele dessa vez respeitou, sentou quieto, contradizendo a sua natureza, e ouviu o sermão do início ao fim, muitíssimo interessado. O padre gostou, suspirou. “Esse menino tem salvação!” Nas semanas seguintes, Guirigó já freqüentava a missa com assiduidade e interesse crescentes. Arrumou uma camisa de sair e uma calça meio curta, mas muito elegante. Um sapatinho brilhoso e uns números além do seu. Uma gravatinha grená e a alma limpa. As beatas e a bíblia que lhe deram. Nada mais de pipa, pé sujo pelo chão, cochilo pelos cantos da praça. Agora Guirigó passava o dia na biblioteca de seu Roberto, lendo teorias e decifrando mundo. E à noite ia à missa, escutar as palavras bonitas e as promessas do seu padre. Guirigó ganhou então uma lente e um afastamento. Ele antes tão víscera, tão vida e sujeira, tão vivo, agora decifrava e interpretava de acordo com o que os livros diziam. Tudo à volta ganhava teoria, ganhava sentido, ganhava amarra. E o guri agora usava brilhantina no cabelo, goma na camisa e em cima de tudo o que lhe diziam, ele tinha uma referência. Fulano disse isso, cicrano já descobriu isso, não, não, não sei onde, não fica lá pra riba, é lá pro sul. Referência, orientação. O moleque parecia uma enciclopédia. Sabia daqui e do além, do paraíso. O padre disse que para lá ele ia, e quase que o guri não se agüentava de ansiedade. Ia perdendo sua pureza, sua inocência, sua poesia? A vida agora era de signos, de significados ensinados. E muita, muita expectativa e projeção. O espanto, a beleza da estréia iam se perdendo. A espontaneidade da vida ia ficando pelo caminho. Há quem diga que o moleque nem mais olhava pro céu, pra ver se vinha chuva ou sol pro outro dia. A lua, antes destinatária de assovios e angústias, agora satélite cinza, sem graça pairava no alto. Não ligava mais pras festas nem pros sambas, não aprontava traquinagens, não levantava saia de mocinha nem roubava cachaça de capiau bobão. Agora o pretinho era um estudioso, se preocupava com suas ações, em se manter limpo e comedido. Desse jeito ganhou a simpatia das pessoas e virou praticamente o talismã das beatas. Lhe davam o de comer, lhe arrumaram um quartinho pra dormir, com fronha limpa e lençol cheiroso. Banho? Agora era duas vezes por dia, e quando frio fazia, era morninho. Escovava os dentes, assoava o nariz e penteava o cabelo. Nunca mais admirou o vôo louco das borboletas nem o cantar dos passarinhos. Nunca mais prestou atenção pra esses coisas tão bobonas, tão correntes, tão irrelevantes. Nos livros tinha tudo, já haviam observado isso por ele, conceitualizado e domesticado as atitudes, os sentimentos, e o mundão que ele achava vasto só pelo que via, agora era pequeno. Continuava imenso só porque ele sabia que tinha mais, por que imaginava as coisas que lia, as projetava. Agora pra Guirigó tudo tinha um fundo e uma conseqüência. Guirigó se transformava num menino de cultura. E o que mais se ouvia pelos bares, pelas lojas, pela praça, pelos certos e errados da cidadezinha era: “É, demorou, mas parece que agora o menino cresceu. Guirigó tá virando HOMEM!”

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Forma de Dragão.

Ontem eu comi uma ostra, uma ostra feita de açafrão.
Vermelho.
Feito sangue mensal de mulher. Fiquei voando, assim. Depois fui andar pertinho do rio, tinha borboletas. Uma era azul com as asas flamejantes. Riscava o céu e deixava um rastro de fumaça atrás dela. O seu rabo, pequena chama laranja, caiu em meu chapéu e eu acendi o meu cigarro. Ah sim, meu cigarro tem nome. Ele se chama Sinhôran.
Sinhôran vive na minha boca a me suscitar bobagens, blasfêmias, batuques e saliva amarga que eu gosto de engolir. Mas eu só gosto de engolir saliva amarga, as blafêmias, eu engulo para que não pularem para o resto do mundo e se transformarem em fiapo de brasa doida em mato verde.
Eu adoro um mato verde e adoro Sinhôran.
De madrugada, depois do passeio perto do rio, eu sentei no alto de uma ribanceira e estava como que a um palmo do céu - ainda bem que não era de manhã, o sol me faria suar demais. Sentia um fedor enorme. Uma nuvem tenebrosa e pálida se esfregou em mim, um silêncio chato e grande demais tomou conta da ribanceira inteira, estranhei. Meu corpo tremeu. De repente, sair rolando ribanceira a baixo e meu cavalo me levou para tomar um banho, estava precisando. Aprendi. Não tem necessidade, só perigo, me aproximar tanto do céu.
Amanhã vou viajar. Vou de carro de boi. Carro de boi tem forma de dragão.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Zé Dendágua

Guirigó nunca teve problema com a sua guiriguisse. Para alguns ele era Guirigó até demais, mas ele mesmo era só Guirigó. Seu tamanho nunca foi medida para as consequências dos seus atos, de tal forma que para alguns ele tava mais era para bandido-marginal merecedor de voz de cadeia do que meninisse na curva da ingenuidade. Assim sendo, era ele de cá e os outros de lá, a gente bem sabe disso. E numa dessas fez-se de o metro-e-vinte bandear distância qualquer. E foi mesmo. Parou foi na Baía de todos os santos (com a chegada de Guirigó, mais um diabo), nos mares grandes e desconhecidos pela gente de lá d´onde nasceu. E, se vindo do toco de gente que era, sempre foi o mistério de onde saía tanta, mas tanta molequeza, igualmente foi como ele parou lá em tanta distância. Talvez caiba aqui notar que os tantos e as distâncias entre o Guirigó e o mundo fossem tais, que seria indiferente o cá e o acolá. E assim, Guirigó encontrou o mar, e o mar encontrou Guirigó. A praia? Dos que dizem e ouviram conta-se que o filho-do se encontrou com as criaturas marítimas, c´as tartugas nadadoras, gigantes e chocadeiras! Quem contou primeiro foi o Joalin, levantador de paredes, que aceita trabalho até nas grandes distâncias. Conta que ele nas tartugas se agarrou e deixou que o levassem até onde elas fazem o ninho, igual os passarim.

- Das primeiras coisas que sempre se soube do muleque era seu gosto e cuidado com passarim. Nem o estilingue ele deixava que atirassem mais. Quando deparou com as criaturas ele disto deve ter se alembrado e pensado mais que elas eram os pássaros do mar. Ô mas que o muleque tinha que ter razão, e foi pra água sem saber nadar nem nada, só pra ver as tartuga nadar debaixo d´água.

E o que se conta, da parte que chega, era que o muleque até que tinha razão mesmo, que das tartuga só faltava o canto do pio. E aí, o que o Guirigó fez, ô Joalin?

- Ah, é aí que a história melhora: parece que diferente dos passarim também, as tartuga num ficam pra chocar os ovinhos, não. E o Guirigó, aquele pretinho, queria desenterrar os ovos pra esquentar igual fazem as chocadeira. Mas não custou pra ele entender que era diferente, mas largou os ovinho com muito custo, achando que não iam chocar. Quê de dois mes depois nasceram os fiotin, e o Guirigó ficou num contentamento sem igual. Ah, mas que ele queria até era ensinar os pequenos a cantar canto de pio de pássaro. E não se controlou quando viu que um monte dos bichin morre quando vão correndo pra praia nadar. Tentou, mas tentou salvar tudo, com lágrima escorrendo, foi uma tristeza só. Naquele dia ele deve ter entendido que é assim mesmo. Só que morre de ódio até hoje do tal do caiangueje, um bicho esquisito que mora debaixo da areia e tem pata de gancho, e mais dois ói arrebitado que olha pra tu, sempre em pose de combate. E também aprendeu a desgostar de um pássaro gritador, de bico amarelo, que parece um gavião vestido de branco.

E se o tempo fosse mesmo amigo do Guirigó, parece que ele ficava era por lá mesmo, deixando que o sal do mar dissesse quem ele era. Mas as coisas não tem determinação precisa mesmo, e se o mistério da partida do pequeno parecia não ter solução, foi essa tal notícia - já famosiando e virando lenda, quase uma tradição oral contada em hexâmetros datílicos -, foi essa tal notícia quem revelou alguma coisa para o desentendido da partida. Parece que algumas pessoas quiseram se ajuntar ao pretin lá na Baía, e conseguiram o feito, à base de carona, paradas em cidades distantes para uma esmola, outrora um ônibus de uma região a outra, caminhadas longas em beira de estrada, até a tal da praia com tartuga nadadora. Dos que foram, a princípio uns cinco ou seis muleques que desaprenderam as malícias e brincadeiras e sentiam saudades do mestre, e mais um bêbado velho que não tinha mais o que fazer, chegaram dois. O velho morreu no meio do caminho - atropelado - e dos muleques, um deles era um tal de zé, e já se esqueceu se zé era o nome dele mesmo ou se era pela incorporação do apelido típico e usual, zé dendágua. O outro era colega do Guirigó mesmo, e de algum modo não iria incomodar, mas o zé dendágua...foi só se chegar na terra e encontrar o pretin atarefado com sua nova vida de encantador de tartuga, que tudo mudou. Agora já não importava mais elas, os passarim do mar, as tartuga, nem os filhotinhos brotando da areia, miniaturas, que ninguém nem explicou que eles tem que ir pra água nadar que eles já sabem de tudo; foi só o zé chegar que nada mais importava, era preciso ir-se embora. E expressão miúda do muleque ficou grosseira, de emburramento sem cura, era preciso uma solução; uma fuga era o mais imediato, mas aí o dendágua ia atrás, chegava até de volta: "se chegou inté´qui..." dizia pra si mesmo o pequeno, que logo percebeu o gosto do zé mais o outro amigo com as tartuga. E começou a ensinar a eles tudo o que sabia sobre elas, sobre os inimigos naturais delas: que tinha de tudo pra matar fiote de tartuga. E ensinou tudo do mar, e das areias, dos bichin que existiam lá, e nas pedras e dentro do mar, e passou o dia contando causo e mostrando e levando aqui acolá, adentraram a noite na conversa, e quando a deusa dos róseos dedos iluminou a primeira aurora, os dois amigos, o zé dendágua mais o outro, eram grandes entendedores e de tudo sabiam da nova vida nos mares salgados. E dali mais uma semana com eles, Guirigó sabia que eles não iam embora nunca mais, que aqueles dois eram agora pescadores, sertanejos pescadores, de fiar rede e passar semana em barco pescando. Agora Guirigó podia voltar pra casa, a distância do dendágua. E foi.

No mistério do ir repousa também o mistério do vir, de um dia pro outro aquela cidade apareceu com o jovem velho conhecido pretinho cagador, amante das raparigas e bom de bola, que levava jeito pra herói de histórias e servia de inspiração para um ou outro letrado poder ter o que fazer. E no que pisa a terra de volta, Guirigó já rodeia a redondeza, dos brejos à praça da cidade ouvindo e cantando junto com a passarada que o esperava ansiosamente, cheia de saudades.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Rotineiro

O dia passou.


No início ele prometeu ser lindo. O sol que nasceu amarelo iluminou de frescor o lugar. A partir daí cada um abandonava sua cama, seguindo ordem ou causa. Uns despertavam no cantar do galo, outros, mais naturalistas, só respeitavam o fastio do próprio sono. Outros seguiam motivos mais pontuais. Certa senhora, insone, noite perdida em claro a contemplar o hino dos grilos, era aliviada que recebia o primeiro raio de sol. Na outra esquina, outra senhora, também insone, havia perdido a noite velando o ronco alto do marido, e era com ódio que tomava consciência da noite em claro, e a separação era caso, agora mais do que nunca, resolvido. Na casa de janela grande, certo moleque não agüentava o recado do sol, que enchia seu quarto de luz, e avisava que era hora da rotina.
Aí vinha a hora do desjejum, do pão com manteiga, do café com leite. Tudo ali seguia o roteiro da simplicidade. As coisas nesse lugarejo impensado aconteciam por simples continuação de fatos desencontrados. Tudo acontecia por que sim, implicando-se a si mesmo, e independendo de si próprio. A calma, a serenidade e a dependência da sorte; as rixas que perduravam, os motivos esquecidos, os amores não vividos; a cueca suja, a meia encardida; a barba por fazer, as olheiras a disfarçar, a raiva a abafar; tudo isso é rotina, é vida, e por ali, acontecia porque sim, e sabe-se lá desde quando.
Café tomado e cara lavada. Dentes escovados e o lugarejo desperto. A partir daí a rua vivia, um e outro ia saindo, encontrando compadre, dando bom dia. As lojinhas mutiladas rangiam suas portas, as folhas ficavam mais verdes, a poeira mais alta, o céu mais azul; e as torneiras rugiam, enquanto as donas-de-casa lavavam a roupa do marido e da molecada, e trocavam palavras por cima do muro baixo. Os copos dos bêbados convictos começavam a se encher, os cachorros passeavam sem rumo e os gatos iam dormir; os pregadores assumiam seus postos na pracinha e a moça mais bonita da cidade adoçava o ar por onde passava e fazia malandro torcer o pescoço; enquanto os sentimentos mais puros cochilavam nos peitos, o fulgor se esvaía e o lugar refogava na sutileza da rotina.

Foi uma boa manhã.

Daí veio a hora do almoço, hora de parar. É, por ali tudo parava pra hora do almoço. O tilintar dos talheres ressoava em uníssono, os dentes mutilavam carnes e a roça terminava sua missão, morta na boca. Depois batia aquele sono, aquela moleza. E todo mundo; sim, todo mundo tirava sua sesta. Tinha moleque que entrava em rixa com a mãe. Ora, o guri não quer saber de dormir. Já não basta a hora do almoço, hora que quebra a manhã de brincadeiras, de bicudas na bola, de pião no asfalto, agora vinha a hora do cochilo. Mas moleque não quer saber de cochilo, quer ir pra rua; mas ah, o que se há de fazer?, a mãe obriga. Tem que dormir! Quinze minutinhos, cinco que fossem... e a molecada ia, a contragosto, fechar os olhos, contar o tempo nos dedos e levantar antes dos três, se dizendo descansada e pronta pra tarde promissora. Mas a cidade dos homens ainda boiava no torpor das duas da tarde. Hora mais estática, mais sufocante, mais angustiante do dia. Folhas todas paradas, telhas quentes, asfalto e barro seco fumegantes, e a sesta era uma mistura de trégua e suor.
Enquanto isso nada de nuvens se acumulando pelo céu, e a volta ao trabalho ou a continuação da bebericagem no boteco era saldada por uma lona azul límpida. A tarde, então, transcorria sem grandes alardes.
Por ali a escolinha só tinha aula à tarde, e ensinava, muito mal, a ler e escrever. Por essas horas havia uma movimentação tímida pelos seus arredores. Os freqüentadores da escola, diziam por ali, eram todos uns pobres sonhadores, uns iludidos, que ainda tinham fé ou esperança na erudição, no aprender alguma coisa por meio daquelas letrinhas embaralhadas.
Tanto faz na escola ou no puteiro, no curral ou na sala do delegado, na primeira casa depois que passa o campinho ou na cabeça da menininha virgem e apaixonada, a tarde naquela cidade malfadada parecia durar uma eternidade. Só se ouviam uns poucos pássaros cantores, uma caminhoneta velha entregando gás, uma ou outra música cafona enchendo o coração de um corno ou outro, e o ronco do prefeito, que de pernas pro ar, estendia a sesta pela tarde inteira, gozando, diziam, da única vantagem de ser prefeito por ali: o ar condicionado.
O transcorrer da decaída do sol pelo céu começava a ser acompanhado por uma brisa leve, que chacoalhava as folhas das amendoeiras da rua, e fazia voar o pó acumulado nos postes e placas. Lá pelas cinco, a tarde era quase agradável. Os passarinhos cantavam felizes e agitados, cada qual procurando seu lugarzinho no galho pra dormir. Os comerciantes, o moço da farmácia, o do açougue, o da casa de material de construção e o da mecânica, eram tomados por uma quase satisfação, já que a hora de ir embora estava perto. O bar começava a receber os amigos em busca de papo furado, e os encontros mais inesperados e os diálogos mais inusitados vez por outra se davam por ali.
O anoitecer era vermelho e quase mudo, se não fossem as cigarras anunciando o mesmo sol pro outro dia.

Foi mais uma tarde das muitas.

A noite, então, veio, como conseqüência natural da tarde, que havia sido a conseqüência natural da manhã. Quando o sol se punha, alguns seres enfurnados e anônimos durante o dia, povoavam as ruas, e algumas das figuras matutinas travavam encontros promissores com elas. Saíam, à noite, acima de tudo, muitos mosquitos. Mas eram muitos mesmo... e mais alguns cupins que ficavam num sobrevôo inquieto em volta da luz dos postes. Na verdade, desses aí o pessoal não gostava muito. Boas mesmo eram as moças cheirosas, de cabelo molhado, boca colorida, unha comprida e papo mole que apareciam pelas esquinas. Tinha nego que passava o dia inteiro sonhando com elas. Diziam pelas redondezas que naquele lugar as quengas eram as melhores.
Lugar que parecia só funcionar bem à noite, era o bar. O da sinuca então, que ficava do lado da casa do Nestor, era sempre o mais cheio. E era papo pra lá, cerveja pra cá. E sinuca acolá, e pinga de cá. O lugar aparentemente ficava muito animado. Mas, na verdade, era só um bando de marmanjos, reclamando, chorando as pitangas e agruras do dia. Uns se diziam engabelados por certo cliente espertalhão, outros reclamavam da falta de eficiência no atendimento do banco. E a merda que estavam as laranjas no sacolão, e o filho da puta do patrão, e aquele centroavante perna de pau. Uns mais sensíveis despejavam suas chagas mal curadas e seus amores mal resolvidos nos ouvidos amigos. Às vezes também pipocava uma briga, e quase sempre por causa de mulher. Mas hoje não, briga não ia acontecer por ali; estavam todos neutros, meio tranquilos e desanimados, só preocupados em beber sua cerveja, discutir o jogo de domingo e as probabilidades de chuva pros próximos dias.
E a noite assim ia acabando. Uns crentes iam à igreja, uns namorados visitavam a namorada, uns barrigudos jogavam uma pelada no campo, uns moleques fumavam escondidos na praça, uns vaga-lumes piscavam no mato e a desesperança comprimia quase todo mundo.



Hoje não aconteceu nada naquele lugar simples, infame e esquecido; e Guirigó, agora, enquanto contemplava as estrelas deitado no chão, cabeça no meio-fio, pensava no seu sonho da noite passada. No tal sonho, uma mulata linda, com olhos grandes e sorriso no rosto, havia lhe avisado que hoje seria um dia muito especial. Guirigó, que era moleque onipresente em todo canto da cidadezinha, ficou inquieto esperando o tal acontecimento peculiar e promissor. Acabou não vendo nada demais acontecer. Nem suas habituais aventuras ele havia empreendido. Passou o dia perambulando por aí, a esmo, sem fazer nada, contando as horas, ansioso, e tentando preenchê-las com qualquer banalidade, pra hora da coisa especial acontecer. Mas agora, o dia passou, era quase meia-noite e a única coisa interessante era o brilho lá no alto das estrelas. Olhando pra elas, tão bonitas, lá em cima; cada uma mais cintilante e feliz que a outra, Guirigó quase acreditou que esse era o acontecimento peculiar.
Há quem diga que o cotidiano é sublime e que cada dia é especial. Há quem acredite na potência poética da rotina. Talvez o acontecimento tão esperado por Guirigó tenha sido o dia em si, a manhã clara, promissora; a tarde quente, angustiante, banal, e a noite fresca, estranha e velha conhecida. Mas, é... naquele dia não aconteceu nada demais.

Daqui a pouco começa outro dia.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Morno lodo. Céu azul e aves deslizando. Guirigó caminha para debaixo de uma árvore, recolhe a sombra para si e dorme, acorda atônito em meio à multidão, uma procissão o despedaça. São Sebastião ou São João Batista? São Judas Tadeu. Vira o rosto e vê o passarinho. Sabiá. Olha pra mão e tem estilingue - alguém bate em sua cabeça e pensa: estilingue não. Agora tem um alçapão e uma corda. Precisa de chamariz, algum inseto? Alguma fruta, algum grão? Coça a cabeça por uns segundos. Agora se vê de calça e blusa passada, de botão. Fila de banco? Fila de emprego? Um peso repentino e eterno lhe toma o corpo. Tem um espelho e se vê. Guirigó sem barba e sem camisa apanha de um empregado da venda. Um pote caído no chão já dizia tudo. Pega o pote e coloca no lugar, em seguida cai doente em uma cama e uma mulher cuida de sua vida, um primeiro, único, último amor, uma doença que cura, uma cura que se mistura. Curanda e curado na mesma cama da doença. Uma doença como a gravidez. Um filho preto e um fio de barba e a dita fila. Guirigó olha pra frente, um padre lhe faz o sinal da cruz e oferece a hóstia - aquele padre. Aquela igreja, aquele lugar. Guirigó homem casado e com filho. Guirigó o menino preto que encapetava a cidade. Guirigó é demais, Guirigó é demais, Guirigó não merecia tanta coisa. Nem as boas nem as ruins. No jornal, dentro de casa. É demais, Guirigó, não vai dar conta. Guirigó jogador, Guirigó pivetinho, que diferenças faz? Guirigó vai para o puteiro, aprende a comer as menininhas, Guirigó não sabe a diferença entre prazer e dor, tristeza e alegria. Guirigó recebe as coisas com demasiada sabedoria? Guirigó é a tua própria vida apenas com certa força na alegoria.