sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O aprendiz

Guirigó aprendeu a ler. E não sabia? Parece que não. Aprendeu ensinado? Vai saber... Talvez pelas migalhas que ele tentava catar das aulas na escolinha que caía aos pedaços. Ou então do nada? Do nada. Belo dia tudo fazia sentido, o antes amontoado de símbolos desregrados agora passava mensagem. Por ali aconteciam milagres. Pois é... O que se sabe, é que o moleque parecia não saber, e agora sabia; ler. Como sabia-se? E não era que ele não saía da frente da escola, da banca, da farmácia, da casa do seu Roberto, que diziam ter uma biblioteca de livros irrelevantes. Não dispensava bula de remédio, cartaz no poste, propaganda, jornal, revista, verso de xampu. Lia e lia e lia. E todo mundo muito admirado. E o moleque atrás de qualquer pedaço de papel escrito. Qualquer símbolo, qualquer sentido. Guirigó queria mesmo era praticar sua nova descoberta. Relia, relia. O padre, esperto como só, deu-lhe logo uma bíblia. “Lê meu filho, é a palavra do Senhor, é a salvação!” E o guri feliz, trocentas folhas, capa e contracapa. Um livro de verdade. E se pôs a devorá-lo. “Ih, andam dizendo que aquele capetinha agora lê, e lê é a bíblia. Ora, vê se pode?!” E não era só: lia o jornal. Ou melhor, lia as manchetes. E foi aprendendo que existiam mais lugares pra além da sua cidadezinha. Lugares outros, com acontecimentos de muitas várias coisas. E ele tão ali, tão dali, tão satisfeito com o grandão do céu, com o sopro de vento, com a pelada do campo, com as árvores tão sós, começou a se sentir insatisfeito. Tinham muitos mais lugares por aí! Isso tudo aqui, é só um tiquinho, uma migalhinha. Existe até vida pra depois da vida, pra depois de tudo isso que eu faço aqui, mais do que dia depois outro, depois outro, e mais outro dia, tem uma tal de vida. E isso é conceito construído e registrado! Tem gente que até a perde. Assim, do nada vem algo. Pimba! Mas ó, pode ser que daí não acabe, a Bíblia diz de céu e paraíso! Se eu fizer tudo certinho, eu vou pra lá. Ah, se vou. Paraíso era um nome tão bonito, lá deviam de ter muitas mulheres da vida pra gente namorar, muita atiradeira pra matar calango, muita pipa, pião, muito torresmo com feijão. E televisão pra assistir e colchão macio pra hora de dormir. E ele, que nunca teve nada disso, pode por lá ter! Esse livro grandão ensina tudo, tudinho. Eu vou por ele! E Guirigó parou na porta da igreja, o padre viu, mandou entrar. Ressabiado, sim. E mais que ele, as beatas, já tantas vezes vítimas das capetices do menino. Mas ele dessa vez respeitou, sentou quieto, contradizendo a sua natureza, e ouviu o sermão do início ao fim, muitíssimo interessado. O padre gostou, suspirou. “Esse menino tem salvação!” Nas semanas seguintes, Guirigó já freqüentava a missa com assiduidade e interesse crescentes. Arrumou uma camisa de sair e uma calça meio curta, mas muito elegante. Um sapatinho brilhoso e uns números além do seu. Uma gravatinha grená e a alma limpa. As beatas e a bíblia que lhe deram. Nada mais de pipa, pé sujo pelo chão, cochilo pelos cantos da praça. Agora Guirigó passava o dia na biblioteca de seu Roberto, lendo teorias e decifrando mundo. E à noite ia à missa, escutar as palavras bonitas e as promessas do seu padre. Guirigó ganhou então uma lente e um afastamento. Ele antes tão víscera, tão vida e sujeira, tão vivo, agora decifrava e interpretava de acordo com o que os livros diziam. Tudo à volta ganhava teoria, ganhava sentido, ganhava amarra. E o guri agora usava brilhantina no cabelo, goma na camisa e em cima de tudo o que lhe diziam, ele tinha uma referência. Fulano disse isso, cicrano já descobriu isso, não, não, não sei onde, não fica lá pra riba, é lá pro sul. Referência, orientação. O moleque parecia uma enciclopédia. Sabia daqui e do além, do paraíso. O padre disse que para lá ele ia, e quase que o guri não se agüentava de ansiedade. Ia perdendo sua pureza, sua inocência, sua poesia? A vida agora era de signos, de significados ensinados. E muita, muita expectativa e projeção. O espanto, a beleza da estréia iam se perdendo. A espontaneidade da vida ia ficando pelo caminho. Há quem diga que o moleque nem mais olhava pro céu, pra ver se vinha chuva ou sol pro outro dia. A lua, antes destinatária de assovios e angústias, agora satélite cinza, sem graça pairava no alto. Não ligava mais pras festas nem pros sambas, não aprontava traquinagens, não levantava saia de mocinha nem roubava cachaça de capiau bobão. Agora o pretinho era um estudioso, se preocupava com suas ações, em se manter limpo e comedido. Desse jeito ganhou a simpatia das pessoas e virou praticamente o talismã das beatas. Lhe davam o de comer, lhe arrumaram um quartinho pra dormir, com fronha limpa e lençol cheiroso. Banho? Agora era duas vezes por dia, e quando frio fazia, era morninho. Escovava os dentes, assoava o nariz e penteava o cabelo. Nunca mais admirou o vôo louco das borboletas nem o cantar dos passarinhos. Nunca mais prestou atenção pra esses coisas tão bobonas, tão correntes, tão irrelevantes. Nos livros tinha tudo, já haviam observado isso por ele, conceitualizado e domesticado as atitudes, os sentimentos, e o mundão que ele achava vasto só pelo que via, agora era pequeno. Continuava imenso só porque ele sabia que tinha mais, por que imaginava as coisas que lia, as projetava. Agora pra Guirigó tudo tinha um fundo e uma conseqüência. Guirigó se transformava num menino de cultura. E o que mais se ouvia pelos bares, pelas lojas, pela praça, pelos certos e errados da cidadezinha era: “É, demorou, mas parece que agora o menino cresceu. Guirigó tá virando HOMEM!”

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Forma de Dragão.

Ontem eu comi uma ostra, uma ostra feita de açafrão.
Vermelho.
Feito sangue mensal de mulher. Fiquei voando, assim. Depois fui andar pertinho do rio, tinha borboletas. Uma era azul com as asas flamejantes. Riscava o céu e deixava um rastro de fumaça atrás dela. O seu rabo, pequena chama laranja, caiu em meu chapéu e eu acendi o meu cigarro. Ah sim, meu cigarro tem nome. Ele se chama Sinhôran.
Sinhôran vive na minha boca a me suscitar bobagens, blasfêmias, batuques e saliva amarga que eu gosto de engolir. Mas eu só gosto de engolir saliva amarga, as blafêmias, eu engulo para que não pularem para o resto do mundo e se transformarem em fiapo de brasa doida em mato verde.
Eu adoro um mato verde e adoro Sinhôran.
De madrugada, depois do passeio perto do rio, eu sentei no alto de uma ribanceira e estava como que a um palmo do céu - ainda bem que não era de manhã, o sol me faria suar demais. Sentia um fedor enorme. Uma nuvem tenebrosa e pálida se esfregou em mim, um silêncio chato e grande demais tomou conta da ribanceira inteira, estranhei. Meu corpo tremeu. De repente, sair rolando ribanceira a baixo e meu cavalo me levou para tomar um banho, estava precisando. Aprendi. Não tem necessidade, só perigo, me aproximar tanto do céu.
Amanhã vou viajar. Vou de carro de boi. Carro de boi tem forma de dragão.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Zé Dendágua

Guirigó nunca teve problema com a sua guiriguisse. Para alguns ele era Guirigó até demais, mas ele mesmo era só Guirigó. Seu tamanho nunca foi medida para as consequências dos seus atos, de tal forma que para alguns ele tava mais era para bandido-marginal merecedor de voz de cadeia do que meninisse na curva da ingenuidade. Assim sendo, era ele de cá e os outros de lá, a gente bem sabe disso. E numa dessas fez-se de o metro-e-vinte bandear distância qualquer. E foi mesmo. Parou foi na Baía de todos os santos (com a chegada de Guirigó, mais um diabo), nos mares grandes e desconhecidos pela gente de lá d´onde nasceu. E, se vindo do toco de gente que era, sempre foi o mistério de onde saía tanta, mas tanta molequeza, igualmente foi como ele parou lá em tanta distância. Talvez caiba aqui notar que os tantos e as distâncias entre o Guirigó e o mundo fossem tais, que seria indiferente o cá e o acolá. E assim, Guirigó encontrou o mar, e o mar encontrou Guirigó. A praia? Dos que dizem e ouviram conta-se que o filho-do se encontrou com as criaturas marítimas, c´as tartugas nadadoras, gigantes e chocadeiras! Quem contou primeiro foi o Joalin, levantador de paredes, que aceita trabalho até nas grandes distâncias. Conta que ele nas tartugas se agarrou e deixou que o levassem até onde elas fazem o ninho, igual os passarim.

- Das primeiras coisas que sempre se soube do muleque era seu gosto e cuidado com passarim. Nem o estilingue ele deixava que atirassem mais. Quando deparou com as criaturas ele disto deve ter se alembrado e pensado mais que elas eram os pássaros do mar. Ô mas que o muleque tinha que ter razão, e foi pra água sem saber nadar nem nada, só pra ver as tartuga nadar debaixo d´água.

E o que se conta, da parte que chega, era que o muleque até que tinha razão mesmo, que das tartuga só faltava o canto do pio. E aí, o que o Guirigó fez, ô Joalin?

- Ah, é aí que a história melhora: parece que diferente dos passarim também, as tartuga num ficam pra chocar os ovinhos, não. E o Guirigó, aquele pretinho, queria desenterrar os ovos pra esquentar igual fazem as chocadeira. Mas não custou pra ele entender que era diferente, mas largou os ovinho com muito custo, achando que não iam chocar. Quê de dois mes depois nasceram os fiotin, e o Guirigó ficou num contentamento sem igual. Ah, mas que ele queria até era ensinar os pequenos a cantar canto de pio de pássaro. E não se controlou quando viu que um monte dos bichin morre quando vão correndo pra praia nadar. Tentou, mas tentou salvar tudo, com lágrima escorrendo, foi uma tristeza só. Naquele dia ele deve ter entendido que é assim mesmo. Só que morre de ódio até hoje do tal do caiangueje, um bicho esquisito que mora debaixo da areia e tem pata de gancho, e mais dois ói arrebitado que olha pra tu, sempre em pose de combate. E também aprendeu a desgostar de um pássaro gritador, de bico amarelo, que parece um gavião vestido de branco.

E se o tempo fosse mesmo amigo do Guirigó, parece que ele ficava era por lá mesmo, deixando que o sal do mar dissesse quem ele era. Mas as coisas não tem determinação precisa mesmo, e se o mistério da partida do pequeno parecia não ter solução, foi essa tal notícia - já famosiando e virando lenda, quase uma tradição oral contada em hexâmetros datílicos -, foi essa tal notícia quem revelou alguma coisa para o desentendido da partida. Parece que algumas pessoas quiseram se ajuntar ao pretin lá na Baía, e conseguiram o feito, à base de carona, paradas em cidades distantes para uma esmola, outrora um ônibus de uma região a outra, caminhadas longas em beira de estrada, até a tal da praia com tartuga nadadora. Dos que foram, a princípio uns cinco ou seis muleques que desaprenderam as malícias e brincadeiras e sentiam saudades do mestre, e mais um bêbado velho que não tinha mais o que fazer, chegaram dois. O velho morreu no meio do caminho - atropelado - e dos muleques, um deles era um tal de zé, e já se esqueceu se zé era o nome dele mesmo ou se era pela incorporação do apelido típico e usual, zé dendágua. O outro era colega do Guirigó mesmo, e de algum modo não iria incomodar, mas o zé dendágua...foi só se chegar na terra e encontrar o pretin atarefado com sua nova vida de encantador de tartuga, que tudo mudou. Agora já não importava mais elas, os passarim do mar, as tartuga, nem os filhotinhos brotando da areia, miniaturas, que ninguém nem explicou que eles tem que ir pra água nadar que eles já sabem de tudo; foi só o zé chegar que nada mais importava, era preciso ir-se embora. E expressão miúda do muleque ficou grosseira, de emburramento sem cura, era preciso uma solução; uma fuga era o mais imediato, mas aí o dendágua ia atrás, chegava até de volta: "se chegou inté´qui..." dizia pra si mesmo o pequeno, que logo percebeu o gosto do zé mais o outro amigo com as tartuga. E começou a ensinar a eles tudo o que sabia sobre elas, sobre os inimigos naturais delas: que tinha de tudo pra matar fiote de tartuga. E ensinou tudo do mar, e das areias, dos bichin que existiam lá, e nas pedras e dentro do mar, e passou o dia contando causo e mostrando e levando aqui acolá, adentraram a noite na conversa, e quando a deusa dos róseos dedos iluminou a primeira aurora, os dois amigos, o zé dendágua mais o outro, eram grandes entendedores e de tudo sabiam da nova vida nos mares salgados. E dali mais uma semana com eles, Guirigó sabia que eles não iam embora nunca mais, que aqueles dois eram agora pescadores, sertanejos pescadores, de fiar rede e passar semana em barco pescando. Agora Guirigó podia voltar pra casa, a distância do dendágua. E foi.

No mistério do ir repousa também o mistério do vir, de um dia pro outro aquela cidade apareceu com o jovem velho conhecido pretinho cagador, amante das raparigas e bom de bola, que levava jeito pra herói de histórias e servia de inspiração para um ou outro letrado poder ter o que fazer. E no que pisa a terra de volta, Guirigó já rodeia a redondeza, dos brejos à praça da cidade ouvindo e cantando junto com a passarada que o esperava ansiosamente, cheia de saudades.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Rotineiro

O dia passou.


No início ele prometeu ser lindo. O sol que nasceu amarelo iluminou de frescor o lugar. A partir daí cada um abandonava sua cama, seguindo ordem ou causa. Uns despertavam no cantar do galo, outros, mais naturalistas, só respeitavam o fastio do próprio sono. Outros seguiam motivos mais pontuais. Certa senhora, insone, noite perdida em claro a contemplar o hino dos grilos, era aliviada que recebia o primeiro raio de sol. Na outra esquina, outra senhora, também insone, havia perdido a noite velando o ronco alto do marido, e era com ódio que tomava consciência da noite em claro, e a separação era caso, agora mais do que nunca, resolvido. Na casa de janela grande, certo moleque não agüentava o recado do sol, que enchia seu quarto de luz, e avisava que era hora da rotina.
Aí vinha a hora do desjejum, do pão com manteiga, do café com leite. Tudo ali seguia o roteiro da simplicidade. As coisas nesse lugarejo impensado aconteciam por simples continuação de fatos desencontrados. Tudo acontecia por que sim, implicando-se a si mesmo, e independendo de si próprio. A calma, a serenidade e a dependência da sorte; as rixas que perduravam, os motivos esquecidos, os amores não vividos; a cueca suja, a meia encardida; a barba por fazer, as olheiras a disfarçar, a raiva a abafar; tudo isso é rotina, é vida, e por ali, acontecia porque sim, e sabe-se lá desde quando.
Café tomado e cara lavada. Dentes escovados e o lugarejo desperto. A partir daí a rua vivia, um e outro ia saindo, encontrando compadre, dando bom dia. As lojinhas mutiladas rangiam suas portas, as folhas ficavam mais verdes, a poeira mais alta, o céu mais azul; e as torneiras rugiam, enquanto as donas-de-casa lavavam a roupa do marido e da molecada, e trocavam palavras por cima do muro baixo. Os copos dos bêbados convictos começavam a se encher, os cachorros passeavam sem rumo e os gatos iam dormir; os pregadores assumiam seus postos na pracinha e a moça mais bonita da cidade adoçava o ar por onde passava e fazia malandro torcer o pescoço; enquanto os sentimentos mais puros cochilavam nos peitos, o fulgor se esvaía e o lugar refogava na sutileza da rotina.

Foi uma boa manhã.

Daí veio a hora do almoço, hora de parar. É, por ali tudo parava pra hora do almoço. O tilintar dos talheres ressoava em uníssono, os dentes mutilavam carnes e a roça terminava sua missão, morta na boca. Depois batia aquele sono, aquela moleza. E todo mundo; sim, todo mundo tirava sua sesta. Tinha moleque que entrava em rixa com a mãe. Ora, o guri não quer saber de dormir. Já não basta a hora do almoço, hora que quebra a manhã de brincadeiras, de bicudas na bola, de pião no asfalto, agora vinha a hora do cochilo. Mas moleque não quer saber de cochilo, quer ir pra rua; mas ah, o que se há de fazer?, a mãe obriga. Tem que dormir! Quinze minutinhos, cinco que fossem... e a molecada ia, a contragosto, fechar os olhos, contar o tempo nos dedos e levantar antes dos três, se dizendo descansada e pronta pra tarde promissora. Mas a cidade dos homens ainda boiava no torpor das duas da tarde. Hora mais estática, mais sufocante, mais angustiante do dia. Folhas todas paradas, telhas quentes, asfalto e barro seco fumegantes, e a sesta era uma mistura de trégua e suor.
Enquanto isso nada de nuvens se acumulando pelo céu, e a volta ao trabalho ou a continuação da bebericagem no boteco era saldada por uma lona azul límpida. A tarde, então, transcorria sem grandes alardes.
Por ali a escolinha só tinha aula à tarde, e ensinava, muito mal, a ler e escrever. Por essas horas havia uma movimentação tímida pelos seus arredores. Os freqüentadores da escola, diziam por ali, eram todos uns pobres sonhadores, uns iludidos, que ainda tinham fé ou esperança na erudição, no aprender alguma coisa por meio daquelas letrinhas embaralhadas.
Tanto faz na escola ou no puteiro, no curral ou na sala do delegado, na primeira casa depois que passa o campinho ou na cabeça da menininha virgem e apaixonada, a tarde naquela cidade malfadada parecia durar uma eternidade. Só se ouviam uns poucos pássaros cantores, uma caminhoneta velha entregando gás, uma ou outra música cafona enchendo o coração de um corno ou outro, e o ronco do prefeito, que de pernas pro ar, estendia a sesta pela tarde inteira, gozando, diziam, da única vantagem de ser prefeito por ali: o ar condicionado.
O transcorrer da decaída do sol pelo céu começava a ser acompanhado por uma brisa leve, que chacoalhava as folhas das amendoeiras da rua, e fazia voar o pó acumulado nos postes e placas. Lá pelas cinco, a tarde era quase agradável. Os passarinhos cantavam felizes e agitados, cada qual procurando seu lugarzinho no galho pra dormir. Os comerciantes, o moço da farmácia, o do açougue, o da casa de material de construção e o da mecânica, eram tomados por uma quase satisfação, já que a hora de ir embora estava perto. O bar começava a receber os amigos em busca de papo furado, e os encontros mais inesperados e os diálogos mais inusitados vez por outra se davam por ali.
O anoitecer era vermelho e quase mudo, se não fossem as cigarras anunciando o mesmo sol pro outro dia.

Foi mais uma tarde das muitas.

A noite, então, veio, como conseqüência natural da tarde, que havia sido a conseqüência natural da manhã. Quando o sol se punha, alguns seres enfurnados e anônimos durante o dia, povoavam as ruas, e algumas das figuras matutinas travavam encontros promissores com elas. Saíam, à noite, acima de tudo, muitos mosquitos. Mas eram muitos mesmo... e mais alguns cupins que ficavam num sobrevôo inquieto em volta da luz dos postes. Na verdade, desses aí o pessoal não gostava muito. Boas mesmo eram as moças cheirosas, de cabelo molhado, boca colorida, unha comprida e papo mole que apareciam pelas esquinas. Tinha nego que passava o dia inteiro sonhando com elas. Diziam pelas redondezas que naquele lugar as quengas eram as melhores.
Lugar que parecia só funcionar bem à noite, era o bar. O da sinuca então, que ficava do lado da casa do Nestor, era sempre o mais cheio. E era papo pra lá, cerveja pra cá. E sinuca acolá, e pinga de cá. O lugar aparentemente ficava muito animado. Mas, na verdade, era só um bando de marmanjos, reclamando, chorando as pitangas e agruras do dia. Uns se diziam engabelados por certo cliente espertalhão, outros reclamavam da falta de eficiência no atendimento do banco. E a merda que estavam as laranjas no sacolão, e o filho da puta do patrão, e aquele centroavante perna de pau. Uns mais sensíveis despejavam suas chagas mal curadas e seus amores mal resolvidos nos ouvidos amigos. Às vezes também pipocava uma briga, e quase sempre por causa de mulher. Mas hoje não, briga não ia acontecer por ali; estavam todos neutros, meio tranquilos e desanimados, só preocupados em beber sua cerveja, discutir o jogo de domingo e as probabilidades de chuva pros próximos dias.
E a noite assim ia acabando. Uns crentes iam à igreja, uns namorados visitavam a namorada, uns barrigudos jogavam uma pelada no campo, uns moleques fumavam escondidos na praça, uns vaga-lumes piscavam no mato e a desesperança comprimia quase todo mundo.



Hoje não aconteceu nada naquele lugar simples, infame e esquecido; e Guirigó, agora, enquanto contemplava as estrelas deitado no chão, cabeça no meio-fio, pensava no seu sonho da noite passada. No tal sonho, uma mulata linda, com olhos grandes e sorriso no rosto, havia lhe avisado que hoje seria um dia muito especial. Guirigó, que era moleque onipresente em todo canto da cidadezinha, ficou inquieto esperando o tal acontecimento peculiar e promissor. Acabou não vendo nada demais acontecer. Nem suas habituais aventuras ele havia empreendido. Passou o dia perambulando por aí, a esmo, sem fazer nada, contando as horas, ansioso, e tentando preenchê-las com qualquer banalidade, pra hora da coisa especial acontecer. Mas agora, o dia passou, era quase meia-noite e a única coisa interessante era o brilho lá no alto das estrelas. Olhando pra elas, tão bonitas, lá em cima; cada uma mais cintilante e feliz que a outra, Guirigó quase acreditou que esse era o acontecimento peculiar.
Há quem diga que o cotidiano é sublime e que cada dia é especial. Há quem acredite na potência poética da rotina. Talvez o acontecimento tão esperado por Guirigó tenha sido o dia em si, a manhã clara, promissora; a tarde quente, angustiante, banal, e a noite fresca, estranha e velha conhecida. Mas, é... naquele dia não aconteceu nada demais.

Daqui a pouco começa outro dia.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Morno lodo. Céu azul e aves deslizando. Guirigó caminha para debaixo de uma árvore, recolhe a sombra para si e dorme, acorda atônito em meio à multidão, uma procissão o despedaça. São Sebastião ou São João Batista? São Judas Tadeu. Vira o rosto e vê o passarinho. Sabiá. Olha pra mão e tem estilingue - alguém bate em sua cabeça e pensa: estilingue não. Agora tem um alçapão e uma corda. Precisa de chamariz, algum inseto? Alguma fruta, algum grão? Coça a cabeça por uns segundos. Agora se vê de calça e blusa passada, de botão. Fila de banco? Fila de emprego? Um peso repentino e eterno lhe toma o corpo. Tem um espelho e se vê. Guirigó sem barba e sem camisa apanha de um empregado da venda. Um pote caído no chão já dizia tudo. Pega o pote e coloca no lugar, em seguida cai doente em uma cama e uma mulher cuida de sua vida, um primeiro, único, último amor, uma doença que cura, uma cura que se mistura. Curanda e curado na mesma cama da doença. Uma doença como a gravidez. Um filho preto e um fio de barba e a dita fila. Guirigó olha pra frente, um padre lhe faz o sinal da cruz e oferece a hóstia - aquele padre. Aquela igreja, aquele lugar. Guirigó homem casado e com filho. Guirigó o menino preto que encapetava a cidade. Guirigó é demais, Guirigó é demais, Guirigó não merecia tanta coisa. Nem as boas nem as ruins. No jornal, dentro de casa. É demais, Guirigó, não vai dar conta. Guirigó jogador, Guirigó pivetinho, que diferenças faz? Guirigó vai para o puteiro, aprende a comer as menininhas, Guirigó não sabe a diferença entre prazer e dor, tristeza e alegria. Guirigó recebe as coisas com demasiada sabedoria? Guirigó é a tua própria vida apenas com certa força na alegoria.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Carnaval é fogo!

O tempo era de carnaval. Todo mundo se sentia por igual, irrestrito e festivo. Por lá a festança ainda não havia sido institucionalizada. Carnaval não é no mês de fevereiro, semana de festa com alegorias e adereços pra turista ver. Basta um gaiato bem alto gritar “È carnaval” e uma boa dúzia de fogos ribombar estrondosa pelo céu, que pronto, é carnaval! A notícia se espalha mais rápido que fogo em fio de pólvora, o boca-boca faz-se da maior e mais feliz utilidade, e quando dá-se conta, o amontoado de pierrôs, colombinas, batuqueiros, palhaços e bate-bolas, reis de baralho, bailarinas e princesinhas já tomou conta da pracinha e das vielas; e até os quintais maiores, dos senhores mais abastados, viram terreiro de samba e batucada. A felicidade passageira e fugidia enche o peito dos foliões, a tristeza é expurgada em bebedeiras homéricas; garrafas caem pelo chão, comadres ganham passadelas de mão nada comportadas, malandro faz ganho com a carteira do irmão e até o padre se fantasia de mulher, quem sabe pondo pra fora nesses dias de delírio coletivo seu desejo secreto e reprimido. O negócio é que a cidade incandesce em mil cores pelo céu e pelo chão, o cheiro do lança-perfume bota as virgens em delírio, e os sons, quase sempre desencontrados, dão ritmo à loucura coletiva e vivaz do povo, que goza dessa liberdade em liturgia, já esquecido das agruras na roça, dos comércios pouco lucrativos, das diferenças sociais e da seca e reles importância que a vida tem nesse lugar.

As brigas estancavam e pululavam em cada canto da praça, os gritos e uivos de alegria enchiam a noite e as estrelas sumiam no céu, tão grande a luminosidade e ascendência dos fogos de artifício. Os confetes e as serpentinas, a purpurina, as cornetas e a alegria pareciam brotar da alma de cada um, e emanavam um cheiro de mofo, de felicidade guardada muito tempo lá no fundo, esquecida às traças e só trazida à tona nesses momentos extremos. Lá parecia que ninguém gozava daqueles efêmeros momentos de felicidade que gotejam todo dia pela vida de qualquer mortal. Lá a felicidade e a tristeza traziam consigo aquela cota de sem conta. Ou o tempo era de estafo, de picuinhas e cabeça baixa, ou chegava o carnaval, que podia ser mensal, semanal ou anual, e dava fim à mazela coletiva numa lavada de alma. É verdade que esse estado cotidiano de tristeza sem fundo não era assim tão evidente à olhos nus e frios; naquele lugarejo tão pacato, tão adepto da sesta e da serenidade, os matutos, as comadres e até a gurizada mantinha maquiado no rosto um sorriso melancólico, um gracejo de felicidade ilusório, que só se tornava realmente verdadeiro e visceral quando um bom espírito de gaiato proclamava aos altos brados e ensurdecedores fogos de artifício a chegada do carnaval. A partir daí, tudo parecia permitido, e os habitantes possuídos por um espírito de amor e comoção festejavam o carnaval enquanto o mundo todo conspirava contra. Cabeça baixa, amores rompidos, seca na horta, falta de água pro feijão e dor-de-cabeça da mulher eram esquecidos, e à partir daí o que valia realmente a pena era a expurgação, os bailes proibidos; as brigas infundadas que faziam o sangue escorrer pelo rosto fustigado pelas agruras de uma vida sem ilusões. A saga da noite sem fim na cama da mulher do irmão, ou a sobrinha que dormia com o marido da tia já eram sempre perdoados por antecipação pelo deus anônimo responsável por aquela comoção coletiva. E estouravam os fogos abençoando em seita os habitantes no espírito da comemoração extasiada.

E quem sentado no meio fio assistia a tudo isso com o peito em chamas, com um sorriso frouxo de regozijo na cara, se sentindo nessas épocas, sim, em casa, era Guirigó. Naquele dias de carnaval tresloucado o moleque sentia inocentemente que as suas capetagens e maquinarias ganhavam um estatuto de permissão. Com toda aquela gente ali, irreconhecível, com a cidade assim, de pernas pro ar, as traquinagens que ele armava perdiam a importância, ou melhor, pareciam constitucionalizadas, parte fiel da inundação de loucura que tomava conta do lugar. E o moleque se ria e se divertia entrando de baixo da saia das mulheres, sambando desengonçado no meio do tumulto, batendo carteira dos desavisados, botando pé na frente e gargalhando cada vez que um bebum sem rumo se escangalhava todo de cara no chão. A felicidade do pretinho era tanta que o sorriso parecia que ia lhe rasgar a cara de tão grande, e os olhos imprensados ficavam tão pequinininhos quanto uma sementinha de mamão. E ele ria extasiado, e plantava bananeira e bebericava da pinga dos foliões e bolinava as moças desavisadas.

Nesses dias de culto de felicidade coletiva o estabelecimento que mais lucrava no lugar era o puteiro. A cafetina era malandra e aproveitava a loucura geral, o esquecimento dos laços matrimoniais e sentimentais, e armava os maiores e mais lunáticos bailes que a cidadezinha já presenciou. Quando já suados, bêbados e cansados de tanto pular e brincar desde cedo debaixo do sol fustigante, a cambada rumava pro prostíbulo já roucos, tontos e carentes de censura, loucos para aproveitar as delícias que o meretrício tinha a oferecer. E foi um grupo que passava pela pracinha, já doidos de tanto dançar e gritar e pular, e que rumava pro famoso baile, que decidiu apresentar o lugar praquele pretinho doido, que se perdia, também já possuído pelo espírito lunático do carnaval, no meio da roda de samba. Guirigó, que não era bobo nem nada, rumou junto com os gaiatos pro puteiro, inquieto de curiosidade e ansiedade. Apesar de malandro, desconfiavam que o guri nunca tinha visto uma moça nua. Quando chegaram no antro, a festa já estava no auge e a cambada trocava suor e saliva iluminados por uma luz vermelha insana. E era nego sentado no balcão com puta no colo, nego caído no chão com puta em cima, e nego gritando e cantando e pulando e puta com os peitos pra fora, que Guirigó ficou muito impressionado e com vontade até de sair correndo daquele lugar. O moleque viu de tudo lá, mulher gorda com peito caído e rosto bonito, magrela com as costelas amostra, sem dente, mas com os olhos de um brilho solar, viu mulata rabuda que parecia ligada na tomada de tanto sambar e uma morena linda que contrastava seus olhos verdes e seu corpo harmonioso com o desbunde barato do lugar. O gaiato mais solto do grupo, e que havia notado o embaraço e o deslumbre medroso de Guirigó frente a tal novidade e loucura, decidiu descolar uma puta pra ele, pra levá-lo prum quarto lá em cima, onde o tumulto era menor e o moleque ficaria mais calmo, além de por tabela perder o cabaço que, segundo o pessoal, já havia passado da hora. A designada pra tarefa foi Ruth, uma ruiva dos peitos pequenos, uma bundinha respeitável, e dona de uns olhos azuis brilhantes; mas que perdiam a atenção pro nariz imenso que tomava conta do relevo de seu rosto. Diziam que ela era a puta mais carinhosa e atenciosa do lugar, e por isso mesmo a mais indicada para Guirigó que iniciaria, em meio aquela temeridade e insensatez coletiva, sua vida sexual. Chegado lá em cima com Ruth, o moleque era só tremedeira; seu descaso frente as convenções, sua natureza espevitada e seus trejeitos malandros haviam ficado lá fora, na rua junto com os foliões tresloucados, com os fogos loucos e as fantasias eloqüentes. Ficou impressionado com o vermelho muito vivo daquela boca que o mandava deitar na cama de lençóis já empapados de suor, e daquelas unhas, que acariciavam seu corpo num carinho relaxante, mas que só o deixava mais cabreiro. Quando a meretriz começou a despi-lo bem devagar, com um carinho maternal, Guirigó começou a relaxar e a se dar conta que seu pintinho começava a subir. Gostou da sensação e se deixou levar pelas carícias e sorrisos de Ruth, a ruiva; que já a esse ponto começava também a se despir. Só que quando Guirigó se deparou com a nudez da rapariga o tumulto foi geral. O moleque deu de cara com uma mata ruiva no ventre da mulher e se alvoroçou todo, muito assustado e descrente do que nunca tinha visto. Bradou e bradou a plenos pulmões que a boceta de Ruth estava pegando fogo. Se levantou num só pulo, sempre gritando:

- Fogo! Fogo! Fogo! Tá pegando fogo! Tá pegando fogo!

Desceu as escadas num pinote só e gritava e bradava e berrava fogo, fogo, fogo! E foi aquele rebuliço, aquela confusão no baile! Era pierrô bêbado correndo pra lá, derrubando a mulata da bunda grande pra cá, que caía por cima de capiau acolá. A puta que a essa altura fazia um strip pra galera, trepou mais e mais alto no ferro pra não ser também levada pela maré de bêbados assustadíssimos e malucos que saíam correndo numa onda de insanidade. E foi garrafa de cerveja quebrando no chão, e serpentina enrolando no pescoço, e peito caído pulando e gritaria e todo mundo repetia:

- Fogo! Fogo! Fogo! Tá pegando fogo!

E a notícia de que lá em cima estava pegando fogo se alastrou tão rápido pelo puteiro que o saldo da confusão, entre mortos e feridos, foram mil trezentas e quarenta e cinco garrafas de cerveja quebradas e não pagas, oitocentas e trinta de pinga, no mesmo estado. Mil e quarenta e sete coxinhas, quinhentos e trinta e sete quibes, noventa e oito máscaras, setecentos rissoles, setenta e três chapéus, seiscentos e quatro pratos, quinhentas e vinte e sete máscaras de monstro, novecentas e oito embalagens de camisinha fechadas (fora as mil e três usadas), três mil copos, cinquenta e seis bolas de bate-bola, oitocentos cordões de havaiano, quinhentas e três perucas coloridas, quinze dentes, treze mulatos, cinco sararás, um assessor do prefeito, dois bêbados incontestáveis, o negão centroavante do time da cidade, cinco músicos e trinta e três putas jogados e pisoteados pelo chão.

A multidão que fugiu alarmada do baile no puteiro nem bem se deu conta de que era alarme falso. Na verdade, pouco estavam ligando. Depois de supostamente terem salvo sua vida, tinham mais e mais e mais motivo pra se largar à expurgação coletiva de ritmos, ritos, danças, bebedeiras e brigas que continuava e perdurou sabe-se lá Deus quanto tempo naquela cidadezinha perdida por aí, em algum lugar desse mundão. Guirigó? Guirigó dizem que ficou um tempo sumido do lugar por causa da confusão que armou. Há quem acredite que ele ficou foi com vergonha do cabaço que ainda perdurava e há quem diga que ele só seguiu o seu impulso. Sempre teve medo do fogo e preferiu não ir com ele, preferiu fugir rua afora, sonho afora pelo carnaval. Carnaval que naquele lugar é de rua, e não precisa de calendário. Faz-se num salão a céu aberto e com entrada franca, sem cambista nem desfile pra turista ver. No fim, Guirigó, de verdade, nem tinha participado do baile do puteiro, Guirigó só acredita no que é grande e no que é o todo, ruas e sonhos afora.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

O não-diálogo que Guirigó escutou

Aonde Guirigó nasceu e viveu nunca chegou o sinal dos novos tempos. Inexistia algum manicômio, e a prisão era somente uma cela mal e porcamente conservada. A polícia não tinha muito trabalho. Lojas e estabelecimentos não passavam de vendas ou pequenas boutiques - no máximo. Nem mesmo os botecos eram muitos, mas - e isso é notável - estes dois ou três botecos que ali existiam recolhiam a corja de malfeitores e terminava por realizar o imprestável serviço institucional e disciplinar para o povoado. Geralmente os trabalhos para as autoridades locais se limitavam aos bares. A tarja preta da cidade era a cachaça. E os analistas, o confessionário e as rodas de novenas.
De tal forma que aquilo era pouco para Guirigó. Não atoa que ele era o buraco negro que engolia aquilo tudo. A indisciplina do moleque comia todos. Nem cachaça nem reza dava conta. E ainda que houvesse os sinais dos novos tempos, para Guirigó não há novos tempos .
Sua prisão era a prisão de todos. Se ele era o único que isso compreendia? Tanto faz.
Certo é que belo dia, Guirigó passava próximo da venda de Miguelito, um uruguaio misterioso que guardava dentro de casa muitas velhas quinquilharias. Não era daquele mundo aquela estranheza de guardar coisas, imensos baús e estantes. Sua venda era como uma qualquer, mas recebia periodicamente alguns compradores de fora, um deles era constante, um homem branco e alto que nunca conversava com ninguém. Chegava na venda e Miguelito logo fechava expediente para levar o comprador para dentro de casa. Essa atividade não soava ilegal para ninguém; de alguma forma todos sabiam que se trocavam eram as tais quinquilharias; o que ninguém compreendia era porque alguém de longe ia parar lá para comprar objetos mais antigos que os mais antigos moradores da região, e tudo sempre de uma forma que soava esquisito para o povoado, um excesso de formalismos e rigores, cuidados com as peças, um uso de um óculos estranho e o manuseio com flanelas, certamente muito estranho. Guirigó não dava a mínima para isso.
E com essa indiferença ia passando próximo à venda de Miguelito e logo ia deparar com o boteco do Mário. Era como ir de uma esquina à outra na mesma rua, mas passando por uma praça -a única praça - com suas árvores e pássaros ardentes de um festival bucólico, antes de chegar à outra esquina, Guirigó se distraiu com um passarinho pousado no calçamento: Sabiá ou João de Barro? De relance não reconheceu. Sentou-se e logo viu. Sabiá! E o pássaro bateu asas de súbito, como se a exclamação por pensamento do garoto assustasse o pássaro. Nisso, Gurigó viu dois fulanos que conversavam em pé de frente ao Mário´s. E nesse instante a JukeBox do bar entoa um sertanejo elétrico, ou seja lá o que aquilo fosse. A cena chamava a atenção do garoto, que recolhia uma certa calma naquela hora. É que já tinha cagado.
Depois de alguns minutos, a jukebox pára de tocar e Guirigó consegue ouvir o que os dois capiais tanto trocava em palavras. Eram Vevé e Armando. O primeiro nada mais era que um pintor de paredes instalado a cerca de 3 anos na cidade. Como era um tipo de trabalho muito ordinário e específico, tinha de fazer outros serviços, geralmente de limpeza, para a população. Assim se tornou faxineiro da venda de Miguelito. Era Vevé quem contava para todos sobre as coisas miúdas e estranhas que se vendiam com os estranhos contatos do uruguiao. Falou-se certa vez em ouro, mas ninguém acreditou, pois afinal de contas, Vevé era outro estranho que não se conhecia muito acerca de seu passado na cidade, e muito provavelmente variava das idéias. O segundo, Armando, de vida um pouco mais fácil, era homem de algumas posses e certo prestígio. Nascido e criado na cidade, era o oposto espelhado de Guirigó. De porte bem apurado, de juventude ainda resistente em sua face, já conseguira se anoviar com a galante filha do grande fazendeiro da região, Coronel Leandro Genivaldo. O nome da moça não importa.
E como se o franzino Guirigó não houvesse se dado conta, ouvia a conversa apurada dos dois. É que se a princípio não incomodasse o fato de estarem de pé, bêbados, eram duas figuras que se contradiziam entre si. Um pobre e coitado mesmo, e o outro, bem mais avançado do que rico. E era essa a graça toda. Tudo bem que não estavam bêbados a um ponto culminante, de enrolar a língua. A última coisa que havia na conversa era língua enrolada, pode ser que falassem uma língua diferente, por códigos, mas isso nem passava pela cabeça de Guirigó. Ele sabia o que tava acontecendo mesmo. Enquanto um, o humilde, dizia coisas do tipo:
-É que a vida é...a vida é a morte ao contrário né, né. É assim, a pasta de dente que a gente passa nos dente depois do de-comer, ela não tem nada da vida não, nada a ver com vida. É que se fosse entrar no viver a gente tinha era que entender de comê. Que comendo a gente vira o que é, a gente é o que come né, os tomate, os tomatiiin vermelio pra deixar as pernas e os braços do jeito que o tomate é né. E por dentro a carne, tem que comer carne que é pra dar estrutura. E recheado com isso é o feijão, que é a sustança. Feijão e arroz! Há de comer muito arroz.

O outro, respondia na mesma entonação, mas em outro tempo-espaço, que só Guirigó era testemunha:
-Há de se ganhar dinheiro. Ninguém vive só porque come não. Se fosse pela picuinha de uma caça nós éramos tudo era caçador, até hoje. Tem é que trabalhar. Arremeter as terra do de-comê pra nós, sabê plantá e sabê criá, mas sabê vendê também! Olhe. Sabe que sou da opinião, e minha opinião é singela, é das humildes, porque sou homem trabalhador, filho fiel do deus criador. Creio em deus pai, amado e de seu filho redentor. Ô, e quando eu era minino, eu ia era sê padre. É!!! Sê padre, queria usar batina, e falar bonito pro povo, reza em latim pra deus me ouvi. Mas aí, sem falar latim nem nada, eu aprendi, eu, me ouça, eu aprendi a escutar a voz de deus, e ele me disse, que eu devia era colher os frutos, casa com moça da terra, e prosperar os ganho. Isso é! Ele me disse, e eu ouvi, guardo até hoje em mim a voz divina.

E Vevé tentava escutar, mas não entendia nada:
-
Ah, mas se o deus é o divino, há de se não precisar de nada. A bênção tá dada. Se cê precisa é de um que-fazer que deus mandou, não é preciso mais nada. A vida num é dada assim não, não pra filho do diabo que nem nós. Cê tem o que comer, cê é abençoado, mas cê num tem, e tem fome, cê é filho do mal. A vida é do diabo, num é de deus.
Tô errado? Quando o sol vai dá sua careta pra nós de manhã, isso deve ser alguma tramóia, ou de deus ou do diabo, ou dos dois! Mas que há, há. Onde já se viu ter a fome e não ter o de comer? E o sol, esse mesmo sol que arracha nossas cuca! Há, mas quem diga que nada cresce sem o sol e tem os que lá do mar se guiam pela lua pra voltar pra casa e pra pescar o pão nosso, mas onde já se viu, a lua que brilha o noturno, e o sol que não sussega nossa vista? Só pode ser tramóia! Só tramóia. Eu acho que tamo aqui porque somo castigado, filho do demo, a fome é o castigo meudeus!

E falava espalhando os gestos, uns gestos que ninguém conseguia entender. Aliás, Guirigó se ria, do gesto e da fala. Vevé era homem de preguiça, trabalhava o que devia, e tinha sua humildade sempre na frente. Mas o impecilho maior, ou era o seu julgamento dele e dos outros, ou o julgamento dos outros nele. Ele dizia isso porque sabia das dificuldades do Sertão, da vida no campo, e por isso fugia, vinha pra cidade, fazer o mínimo trabalho que fosse, qualquer coisa era melhor que trabalhar arando terra. Seu discurso era o mesmo que sempre ouvira.
E começava Armando novamente:

- Eu fui criado pro que sou. Ah e se tudo for como tiver que ser, no fim ainda me torno governador. É que a vida de fazendeiro, do bom fazendeiro, não tem espaço na fazenda não. Lugar de arrendador é na capital. É com o mundo dos negócios. Eu sou homem de negócios, trabalhador, esperto. Você me aperdoe mas acho que não sirvo pra essa cidade não.

Vevé ia fazendo hum-hum com a cabeça até o momento em que Guirigó quase se destrai com outro pássaro. Dessa vez era pardal ou tico-tico? O moleque não olhou pra ver, tava mais interessado no diálogo inusitado dos dois capiais. E eis que surge no entre-momento da distração um vendedor. Se põe em cena entre Vevé e Armando.
Pisou na calçada, se apresentou com o nome de Neto, com uma rápida citação ao seu avô, dono de seu nome, Senhor Boécio Guimarães, Pernambucano, filho de um branco com uma índia e que teve a sorte de ganhar o nome de branco porque a índia além de aprender o português deixou o seu pai apaixonado. Neto levava a vida pela vida de eterno retirante, o que vem a ser o mesmo que vendedor. Não tinha outros compromissos a não ser para consigo. Conhecia grande parte do Brasil; do Amazonas ao Mato Grosso do Sul, do Maranhão ao Rio de Janeiro. Não conhecia mais porque dizia que tinha preguiça, e que já tinha conhecido o que lhe interessava e que gostava era do nordeste mesmo. Estava vendendo sandálias e tinha uma eloquência no modo de falar, que deixou até o próprio Guirigó com vontade de comprar uma:

-E na vida o que mais que você faz? Que mais que você faz além de andar? Olha que mesmo que ainda tenha do melhor cavalo e da melhor carroça, que tenha do melhor carro a motor, e possa andar de avião e tudo o mais, os pés ainda serão usados. E que trate bem seus pés então, que se tu é cabra, cabra homi, então teu pé é mais ainda! Nada nesse mundo tem a valentia dos pés! Olhe pro chão, pras pedra, esses pedregulho! Olhe pra esse sol, que calor, essa poeira levantando, e quem tá te sustentando esse tempo todo? ELE!!! Há de cuidar bem de teu pé. Vamo lá. É sandália da boa, minha gente, é sandália de côuro curtido. - E terminava as frases meio que cantando e empostando a voz.

No final acabou arrematando três sandálias, não, quatro! O Vevé bem que ficou com vergonha de só levar uma, mas era o que podia levar. Armando que levou as outras três. Teve até desconto, porque era compra a vista. Dizia que vida de fazendeiro merecia descanso para os pés, porque as terras eram muitas pra se caminhar. E disse que uma ia guardar pra quando fosse governador, e que ainda que fossem muito humildes, ele as usaria como homenagem ao povo que o elegeria. Terminada as compras, os três se juntaram para beber mais algumas cachaças e conversarem sobre o que cada um sabia falar, e que Guirigó sabia muito bem. O que não deixava o moleque sossegar das idéias era o porque daqueles dois terem começado a conversar do nada, e ainda por cima num bar, já que dos mais inusitados dos encontros, esse era o maior, Vevé e Armando. Mas acabou se convencendo de que não tem porque mesmo e que nada mais propício do que beber e conversar. Permanecia inexplicado para o garotinho curioso era o conteúdo da conversa, já que apesar de tanta troca de palavras, a última coisa que tinha sido feita, foi conversarem.